quarta-feira, junho 23, 2010

Suspiros

Ele entrou em um sebo no centro de São Paulo, daqueles de estantes de madeira velha e gibis empilhados no chão. Na verdade ele não entrou, mas "deixou-se entrar", como se nada pudesse fazer. Observou estantes, poeiras, gibis e livros. Parou diante de uma estante que continha um exemplar de "Insustentável Leveza do Ser". Lembrou de um dia longínquo de um verão distante, onde ele e uma mulher, a quem entregara as pistas mais importantes de sua vida, deitaram em um gramado de um parque e, sob a sombra pródiga e perene de uma árvore, leram trechos de um livro de Milan Kundera, com o qual ele a presenteara, e que lhes parecia profundamente erótico na descrição de personagens cujos nomes - Thomas, Tereza, Sabina e Franz - eles adoravam pronunciar. Ele tomou o livro nas mãos e o abriu. Havia uma dedicatória com a sua assinatura.

Naquela terça de manhã, o calor nem estava tão absurdo. Andar pelos jardins do Flamengo, vindo da Glória em direção a Botafogo, lhe parecia a única possibilidade de solidão naquele momento. Andou e viu os prédios de uma aristocracia antiga, poliglota, porém decadente. Prédios de varandas transformadas em jardins, com janelas gigantescas dando para outros jardins à beira de uma avenida que, de tão insólita naquele lugar tão bonito, parecia onírica. Parou defronte a um boteco charmoso. Entrou e pediu um chopp. Dentro apenas um casal em um momento de afago verbal. Ele bebericou seu chopp lentamente enquanto olhava o movimento da avenida. Nesse instante, sentiu-se só. Nesse instante, percebeu que havia um rádio ligado e que começava tocar um samba de Nelson Cavaquinho chamado "Luz Negra".

Quando ela se cansou de andar - percorrera toda a rue de Seine - resolveu parar bem no meio da Pont des Arts e ficar observando a Pont Neuf. Quanto tempo ficou ali? Dias depois, não conseguia lembrar. Recordou apenas do momento em que o viu, num café com sua nova mulher, e que chorava silenciosamente na Pont des Arts quando arremessou no rio o exemplar de Rayuela que carregava na bolsa para os momentos em que queria lembrar do que vivera com ele.

Há uma certa comicidade em viver numa cidade no interior do Brasil que alguns confundem com uma cidade espanhola. Há uma certa tragicidade nas noites em que ele vive à base de jazz e vinho, como se fora Nova York ou alguma metrópole qualquer. Contudo, ao abrir a cortina do escritório se depara com uma cidade no interior no Brasil que ele não confunde com uma cidade espanhola.

Ela estava há dez dias sozinha em Buenos Aires. Foi a um concerto no Centro Cultural San Martín. Era um duo de piano e clarinete. Tocaram peças diversas: Ginastera, Piazzolla, Troilo, Villa-Lobos e, no final, surpreendentemente, um arranjo de um tema de Miles Davis. Foi com este tema, construído sobre uma nota blue, que ela saiu pelas calles porteñas. Não andou muito. Subiu a Corrientes, dobrou à esquerda na Callao e entrou no La Academia, um lugar onde estivera anos antes com alguém que lhe suscitava lembranças de um época intensa. Não foi sem emoção que ela abriu a porta e lembrou de uma noite de segunda-feira, num mês de setembro, quando ele estava lá, lhe esperando. Ela olhou o lugar, mediu as pessoas e sentou numa mesa próxima à janela. Pediu um doble e tirou da bolsa uma caneta e sua caderneta. Ficou pensativa durante minutos, enquanto sorvia aquele café de um amargor intenso. Findo o café, abriu a caderneta e registrou: "aqui fui feliz um dia".

2 comentários:

margot disse...

às vezes seus posts me deixam tão trsite que tenho vontade de jogar eu mesma no Sena...

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que merda batma!

Anônimo disse...

ai ai, saudades Allan, poeta querido.