sábado, abril 23, 2011

Post-Mortem

Hoje estou tão triste, mas tão triste, que escreveria um conto. Seria um conto triste, é verdade. Mas talvez me aliviasse a angústia.

terça-feira, novembro 02, 2010

Aqui termina a sede do peixe

tudo que foi escrito neste blog é dedicado amorosamente a Fernando Sabino e a Carlos Drummond de Andrade. Eles é que começaram tudo.

Leitores de "A Sede do Peixe",

depois de pouco mais de quatro anos e meio, este blog chega ao fim. Não tem mais sentido de ser. Esgotou-se. Durante 4 anos e meio, este brinquedo, chamado João Pedro de Andrade, me permitiu inventar coisas e pessoas, dividir medos e desejos, imaginar estórias. Expus-me, reinventei-me, tentei fazer de meus pequenos pensamentos do dia-a-dia matéria para algo que se pretende literatura. Visto hoje, acho que fui feliz às vezes, tolo e ansioso em outras. Durante 4 anos e meio, senti na pele o que Drummond, certa vez, aconselhou: "convive com teus poemas antes de escrevê-lo". Muito do que foi escrito aqui foi vivido em meus pensamentos. Pessoas reais que me deram o mote para personagens, pessoas que nunca existiram senão nos meus sonhos, estórias que vivi e gostaria de ter vivido. Quis apenas dividir com o mundo estes pensamentos vividos e, nesta divisão, aprender que meu olhar nada é senão um entre outros.

Pois aqui chega ao fim este resumo dos meus medos, vícios e desejos, chamado João Pedro de Andrade. Ele me ensinou que tudo findo, tudo passado, restam as palavras. Há anos vivo de me emocionar e de viver com elas, remoendo-as, cheirando-as, comendo-as, tecendo-as. Este blog foi uma tentativa de devolver, com meus parcos recursos, um pouco do que a literatura faz em minha vida: torná-la possível.

Tentei, recentemente, modificando o blog, reanimar o que já estava moribundo. Percebi que não era uma questão de design. Fui, com o tempo, para longe de João Pedro de Andrade, levado por caminhos novos que se abriram em minha vida. Todos inesperados, novos, que me exigem outros sentidos. Por isso, abandono o blog. Espero que nestes 4 anos e meio eu tenha conseguido, senão escrever coisas belas, tocá-los com algumas palavras.

De agora em diante, serão outros olhares, sob outros nomes. Mas sei também, como me ensinou um irmão mais velho, chamado Eduardo Marciano, que o que vai acontecer depois não tem a menor importância.

Um abraço a todos,

Allan de Paula Oliveira

terça-feira, outubro 05, 2010

A teus pés

Sequer conheço Fulana, vejo Fulana tão curto
Fulana jamais me vê, mas como eu amo Fulana

Drummond.

Eu te imagino todos os dias. Feita de carnes, sexos e maldades. Porém, não possuis um nome e a única pele que tens é a de uma defunta, alguém que já se foi. Necrófilo, eu? Não. Sou covarde demais para isto. Na verdade, eu te empresto um corpo que já é passado. Bebo corpos passados, masturbo-me sobre corpos passados, desejo corpos passados, penso em corpos passados. Eu preciso de um corpo para te imaginar. Mas ele sempre tem algo novo. A esperança que deposito em ti. Em algum lugar você se encontra neste momento. Estará com alguém? Amará? Tens 10 anos? Ou será 40? Preparo-me todos os dias para o dia em que te encontrarei. Como será? Às vezes passa pela minha cabeça que já nos encontramos e nada, nada aconteceu. Desespero-me pensando nisto e prefiro o melhor. Perdoe-me a esperança juvenil. Sou um homem de 36 anos, sozinho em meu quarto, envergonhado de meus olhos de menino. Invejo os que se mostram homens feitos, fortes, com traços de gilete e certezas. Eu não me iludo quanto a mim. Não tenho muitas certezas e cada vez as tenho menos. Mas sei ouvir os sambas e ler as palavras de certos poetas. Talvez seja pouco. Mas veja: os sábados à noite estão garantidos.

Na verdade, uma coisa sei sobre mim: meu coração se recusa a envelhecer.

sábado, setembro 18, 2010

Grandes Momentos da Inveja ou Textos Que Eu Gostaria de Ter Escrito

A série "Grandes Momentos da Inveja" traz hoje um dos contos do livro "Amores Difíceis", de Ítalo Calvino, um dos escritores de quem mais gosto. Desse livro, apenas uma palavra: sublime.

Para quem não lembra, a série "Grandes Momentos da Inveja" foi criada, em vidas passadas deste blog, com o intuito de ser um espaço onde eu possa destilar este pecado do qual padeço, chamado inveja. Pecado que, convenhamos, deve ser cultivado em lugares e horários propícios. Há quem reprima. Não recomendo...

Mas deixemos de lado essas considerações inúteis. Segue, o texto.

A Aventura de um Esposo e de uma Esposa

O operário Arturo Massolari fazia o turno da noite, aquele que termina às seis. Para voltar para casa percorria um longo trajeto de bicicleta na estação boa, de bonde nos meses chuvosos e frios. Chegava entre as seis e quarenta e cinco e as sete, ou seja, às vezes um pouco antes, às vezes um pouco depois de tocar o despertador da mulher, Elide.

Freqüentemente os dois ruídos, o toque do despertador e o passo dele entrando, se superpunham na mente de Elide, alcançando-a no fundo do sono, o sono compacto da manhãzinha que ela ainda tentava espremer por alguns segundos com o rosto enfiado no travesseiro. Depois pulava fora da cama de uma vez só e já ia metendo os braços às cegas no roupão, com os cabelos por cima dos olhos. Aparecia assim para ele, na cozinha, onde Arturo tirava os recipientes vazios da bolsa que levava consigo para o trabalho – a marmita, a garrafa térmica – e os punha em cima da pia. Já havia acendido o fogão e posto o café no fogo. Mal ele a olhava, Elide sentia vontade de passar a mão pelos cabelos, de arregalar à força os olhos, como se a cada vez se envergonhasse um pouco dessa primeira imagem que o marido tinha dela ao entrar em casa, sempre assim desarrumada, com a cara meio adormecida. Quando dois dormem juntos é outra coisa, encontram-se de manhã a emergirem juntos do mesmo sono, estão em pé de igualdade.

Já às vezes era ele que entrava no quarto para despertá-la, com a xicarazinha de café, um minuto antes que tocasse o despertador; então tudo era mais natural, a careta para sair do sono ganhava uma espécie de suavidade preguiçosa, os braços que se erguiam para se estirar, nus, acabavam cingindo o pescoço dele. Abraçavam-se. Arturo trazia no corpo a jaqueta impermeável; sentido-o próximo, ela percebia o tempo que estava fazendo: se chovia ou havia bruma ou neve, dependendo de como ele estava úmido e frio. Mas assim mesmo dizia: “Que tempo está fazendo?”, e ele iniciava seu costumeiro resmungo meio irônico, passando em revista os incômodos que tinha atravessado, começando pelo fim: o percurso de bicicleta, o tempo que encontrara ao sair da fábrica, diferente daquele de quando lá entrara na noite anterior, e as encrencas no serviço, os boatos que corriam na seção, e assim por diante.

Àquela hora, a casa estava sempre pouco aquecida, mas Elide se despia toda, um pouco arrepiada, e se lavava, no pequeno banheiro. Atrás vinha ele, com mais calma, também se despia e se lavava, lentamente, tirava de cima a poeira e a graxa da oficina. Assim, estando ambos em torno da mesma pia, meio nus, um pouco enregelados, de vez em quando se dando esbarrões, tirando um da mão do outro o sabonete, o dentifrício, e continuando a dizer as coisas que tinham para se dizer, era o momento da intimidade, e às vezes, acontecendo de se ajudarem mutuamente a esfregar as costas, insinuava-se uma carícia, e se encontravam abraçados.

Mas de repente Elide: “Meu Deus! Que horas já são!”, e corria para meter as ligas, a saia, tudo com pressa, em pé, escovava os cabelos para cima e para baixo, e debruçava o rosto para o espelho da cômoda, com os grampos seguros entre os lábios. Arturo vinha atrás dela, havia acendido um cigarro, e olhava para ela em pé, fumando, e a cada vez parecia um pouco embaraçado, de ter que ficar ali sem poder fazer nada. Elide estava pronta, enfiava o casaco no corredor, davam-se um beijo, abria a porta e já se ouviam seus passos que desciam a escada correndo.

Arturo ficava sozinho. Acompanhava o ruído dos saltos de Elide degraus abaixo, e quando não a ouvia mais continuava a acompanhá-la em pensamento, aquele passo miúdo, rápido pelo pátio, o portão, a calçada, até o ponto do bonde. Já o bonde se ouvia bem: guinchar, parar, e o bater do estribo a cada pessoa que subia. “Pronto, tomou”, pensava, e via a mulher se segurando no meio da multidão de operários e operárias no “Onze” que a levava para a fábrica como todo os dias. Apagava o cigarro, fechava os postigos das janelas, ficava escuro, metia-se na cama.

A cama estava como Elide a deixara ao se levantar, mas do lado dele, Arturo, estava quase intacta, como se tivesse sido arrumada naquele momento. Ele se deitava de seu próprio lado, como devia, mas depois esticava uma perna para lá, onde havia ficado o calor da mulher, em seguida esticava também a outra perna, e assim pouco a pouco se deslocava todo para o lado de Elide, naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume, e adormecia.

Quando Elide voltava, à noite, Arturo já havia um tempo rodava pela casa: tinha acendido a estufa, posto alguma coisa para cozinhar. Certos trabalhos ele é que fazia, naquelas horas antes do jantar, como arrumar a cama, limpar um pouco a casa, até pôr de molho as roupas para lavar. Elide depois achava tudo malfeito, mas ele para dizer a verdade não se empenhava muito: o que fazia era apenas um ritual para esperar por ela, quase um vir ao seu encontro permanecendo entre as paredes da casa, enquanto lá fora se acendiam as luzes e ela passava pelas vendas no meio daquele movimento fora de hora dos bairros onde há tantas mulheres que fazem compra à noite.

Afinal ouvia o passo pela escada, bem diferente daquele da manhã, agora mais pesado, pois Elide subia cansada do dia de trabalho e carregada de compras. Arturo saía no patamar, tirava da mão dela a sacola, entravam conversando. Ela se jogava numa cadeira da cozinha, sem tirar o casaco, enquanto ele ia tirando as coisas da sacola. Depois: “Coragem, um pouco de ordem”, ela dizia, e se erguia, tirava o casaco, punha uma roupa de casa. Começavam a preparar a comida: jantar para os dois, depois a marmita que ele levava para a fábrica para o intervalo da uma da madrugada, o lanche que ela devia levar para a fábrica no dia seguinte, e o que era para deixar pronto para quando ele acordasse no dia seguinte.

Ela um pouco se atarefava, um pouco se sentava na cadeirinha de palha e dizia a ele o que tinha de fazer. Já ele, era a hora em que estava descansado, agitava-se, aliás, queria fazer tudo, mas sempre um pouco distraído, com a cabeça já em outra coisa. Naqueles momentos ali, chegavam por vezes a ponto de se magoarem, de se dizerem palavras pesadas, porque ela queria que ele estivesse mais atento ao que estava fazendo, que se empenhasse mais, ou então que fosse mais ligado a ela, ficasse mais perto, que a consolasse mais. Enquanto ele, passado o primeiro entusiasmo da volta dela, já estava com a cabeça fora de casa, fixado no pensamento de fazer tudo com pressa porque tinha que ir.

Arrumada a mesa, postas todas as coisas prontas ao alcance da mão para não precisarem mais se levantar, então era o momento da angústia que tomava conta dos dois por terem tão pouco tempo para estarem juntos, e quase não conseguiam levar a colher à boca, da vontade que sentiam de ficar ali segurando a mão um do outro.

Mas o café ainda não havia acabado de passar e ele já estava atrás da bicicleta vendo se estava tudo em ordem. Abraçavam-se. Arturo parecia que só então reparava como era macia e tépida sua esposa. Mas punha no ombro o quadro da bicicleta e descia atento as escadas.

Elide lavava os pratos, examinava a casa de cima a baixo, as coisas que o marido tinha feito, sacudindo a cabeça. Agora ele estava correndo pelas ruas escuras, entre os raros faróis, talvez já estivesse depois do gasômetro. Elide ia para a cama, apagava a luz. De seu próprio lado, deitava, espichava um pé em direção ao lugar do marido, para procurar o calor dele, mas toda vez reparava que onde ela dormia era mais quente, sinal que Arturo também havia dormido ali, e isso despertava nela uma grande ternura.

quarta-feira, setembro 08, 2010

Asa da palavra

"Só não existe remédio é para a sede do peixe"

Guimarães Rosa em "Ave, Palavra"

sexta-feira, setembro 03, 2010

Se Carson McCullers fumasse cachimbo

Minha cidade é como aquelas dos romances de Carson McCullers. Um fim-de-mundo, um cu-do-Judas. Tem um barbeiro que sabe da vida de todos, tem uma dondoca sonhando em ter fazenda de soja, tem um professor silencioso, tem uma dentista que trai o marido com o vizinho, tem o viciado em crack, tem o mudo que é caçoado por todos, tem a sesta que todos tiram às duas da tarde, tem um silêncio no meio do dia que nunca sabemos se é um silêncio de vida ou de morte, tem um leiteiro simpático, tem o garoto que ainda ontem foi pela primeira vez à zona, tem o boteco da Tere e o bar do João, tem tudo o que teria um livro de Carson McCullers. Tem inclusive o meu medo de ser enterrado neste cafundó.

segunda-feira, julho 12, 2010

Os inocentes do Leblon, sempre eles.

Ainda ontem me perguntaram deste blog. Por que escrevo (ou não escrevo)? Sempre que penso nisto me vem à mente um poema de Drummond, chamado "Os Inocentes do Leblon". Salvo engano é da primeira leva do Drummond (1930 ou 1934). Diz ele:

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

"Os inocentes, definitivamente inocentes...". Acho que escrevo por ter inveja deles e por achar sua condição bela. Talvez as palavras sejam tentativas de minha inveja e, quiçá, inventar um pouco desta beleza.


quarta-feira, junho 23, 2010

Suspiros

Ele entrou em um sebo no centro de São Paulo, daqueles de estantes de madeira velha e gibis empilhados no chão. Na verdade ele não entrou, mas "deixou-se entrar", como se nada pudesse fazer. Observou estantes, poeiras, gibis e livros. Parou diante de uma estante que continha um exemplar de "Insustentável Leveza do Ser". Lembrou de um dia longínquo de um verão distante, onde ele e uma mulher, a quem entregara as pistas mais importantes de sua vida, deitaram em um gramado de um parque e, sob a sombra pródiga e perene de uma árvore, leram trechos de um livro de Milan Kundera, com o qual ele a presenteara, e que lhes parecia profundamente erótico na descrição de personagens cujos nomes - Thomas, Tereza, Sabina e Franz - eles adoravam pronunciar. Ele tomou o livro nas mãos e o abriu. Havia uma dedicatória com a sua assinatura.

Naquela terça de manhã, o calor nem estava tão absurdo. Andar pelos jardins do Flamengo, vindo da Glória em direção a Botafogo, lhe parecia a única possibilidade de solidão naquele momento. Andou e viu os prédios de uma aristocracia antiga, poliglota, porém decadente. Prédios de varandas transformadas em jardins, com janelas gigantescas dando para outros jardins à beira de uma avenida que, de tão insólita naquele lugar tão bonito, parecia onírica. Parou defronte a um boteco charmoso. Entrou e pediu um chopp. Dentro apenas um casal em um momento de afago verbal. Ele bebericou seu chopp lentamente enquanto olhava o movimento da avenida. Nesse instante, sentiu-se só. Nesse instante, percebeu que havia um rádio ligado e que começava tocar um samba de Nelson Cavaquinho chamado "Luz Negra".

Quando ela se cansou de andar - percorrera toda a rue de Seine - resolveu parar bem no meio da Pont des Arts e ficar observando a Pont Neuf. Quanto tempo ficou ali? Dias depois, não conseguia lembrar. Recordou apenas do momento em que o viu, num café com sua nova mulher, e que chorava silenciosamente na Pont des Arts quando arremessou no rio o exemplar de Rayuela que carregava na bolsa para os momentos em que queria lembrar do que vivera com ele.

Há uma certa comicidade em viver numa cidade no interior do Brasil que alguns confundem com uma cidade espanhola. Há uma certa tragicidade nas noites em que ele vive à base de jazz e vinho, como se fora Nova York ou alguma metrópole qualquer. Contudo, ao abrir a cortina do escritório se depara com uma cidade no interior no Brasil que ele não confunde com uma cidade espanhola.

Ela estava há dez dias sozinha em Buenos Aires. Foi a um concerto no Centro Cultural San Martín. Era um duo de piano e clarinete. Tocaram peças diversas: Ginastera, Piazzolla, Troilo, Villa-Lobos e, no final, surpreendentemente, um arranjo de um tema de Miles Davis. Foi com este tema, construído sobre uma nota blue, que ela saiu pelas calles porteñas. Não andou muito. Subiu a Corrientes, dobrou à esquerda na Callao e entrou no La Academia, um lugar onde estivera anos antes com alguém que lhe suscitava lembranças de um época intensa. Não foi sem emoção que ela abriu a porta e lembrou de uma noite de segunda-feira, num mês de setembro, quando ele estava lá, lhe esperando. Ela olhou o lugar, mediu as pessoas e sentou numa mesa próxima à janela. Pediu um doble e tirou da bolsa uma caneta e sua caderneta. Ficou pensativa durante minutos, enquanto sorvia aquele café de um amargor intenso. Findo o café, abriu a caderneta e registrou: "aqui fui feliz um dia".

domingo, maio 16, 2010

A Invenção do Samba


Quando ele percebeu que ela não viria, depois de horas esperando, ali, naquele café, ele pediu a conta, pagou, levantou-se e saiu.

Fazia frio. Ele deixou-se envolver pelo casaco, sentiu cada poro da pele de seu braço em contato com o tecido grosso. Enfiou as mãos nos bolsos e olhou pro céu. Estava cinza, assim como seu coração.

Só neste instante, quando percebeu que seu amor se fora e que seu coração voltara a ser apenas um músculo, ele se permitiu a primeira e única lágrima.

quarta-feira, abril 14, 2010

Balada


As 3 mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam...

Manuel Bandeira


Ainda hoje penso em Violeta. Tinha olhos verdes. Mistério profundo. Pensava eu: “de quem serão os olhos verdes de Violeta?”. Queria para mim, apenas para mim. Mas como? Eu? Quem era eu para os olhos verdes de Violeta? Não. Nada era. Por isso o mistério. Profundo. Quem seria? Um príncipe? Um algoz? Um estafeta? Um engenheiro de exatos pensamentos e seguro sexo? Um poeta louco e barroco, desses de estudantes sonhos? Talvez nenhum deles. Talvez apenas um homem que a olhasse nos olhos, verdes, sem medo. Era difícil não ter medo de Violeta.

Ainda hoje penso em Violeta e meu corpo se punge. Penso em sexo, gozos e gosmas, salivas. Penso. Meu corpo pensa. Violeta. Todos os poros. Os olhos verdes nus. Violeta do sabonete Araxá. Meu reino por Violeta! Violeta de onze anos. De trinta. Pelancas de setenta. Perverso? Talvez. Ainda hoje penso em Violeta.

Onde estará agora neste exato momento onde dou a volta de minha solidão e meus delírios? Com uma prima carioca, beijando na Cólquida ou amando no Leblon? Ou será uma beata numa igreja evangélica numa cidade perdida do Paraná? Talvez uma moça simples? Daquelas que trabalham numa confecção e que, às nove da noite, se abrem em ponto para um marido que usa boné e cursa contabilidade numa faculdade privada? Onde estará Violeta que outrora imaginei de olhos envoltos de livros e um tanto de rímel? Violeta do livro de Ana Cristina. Violeta existencialista. Violeta de boina. Violeta puta.

Houve Violeta? Não sei. Talvez tenha sido apenas mais um desses meus delírios inventados quando a minha solidão marca meia-noite e meia.

Ainda hoje, bouleversé, pensarei em Violeta novamente.

domingo, janeiro 24, 2010

Adagio

Aos poucos as palavras reaparecem à minha frente. Meu coração anda surdo ao seu apelo, mas elas insistem. Hoje mesmo, numa rede, no início da noite, dessas agradáveis de verão, algumas palavras escritas em uma língua outra por alguém que é apenas memória suscitaram aquela emoção que um bardo mineiro, a quem sigo como um irmão mais velho, chamou de "única, porque causada pela palavra escrita".
Chorei discretamente, algo tanto mineiro. Mas chorei. Espero não ter sido visto: essas coisas a gente nunca sabe...

terça-feira, outubro 20, 2009

Mini-Crônica

...está lá, em cima da mesa, aquele coração que fora congelado durante tanto tempo. É verdade que ele perdeu o hábito de bater e é verdade que seu dono, por falta de uso, não sabe direito o que fazer. Felizmente há pequenos remedinhos para estes momentos: uma música dançante qualquer, uma partida de futebol, uma bandinha na sexta à noite. O dono, contudo, sabe que tudo isto é paliativo.

Por via das dúvidas, e por uma certa desconfiança natural, ele escondeu os discos de tango. Enquanto isto ele vai de samba até mais tarde.

domingo, agosto 30, 2009

Uma canção tem três minutos

He disliked bars and bodegas. A clean, well-lighted cafe was a different thing.
Hemingway

A construção era simples: uma porta na esquina, entre duas ruas, e três grandes janelas laterais que permitiam uma boa visão do exterior, da rua, do mundo. Lá dentro, porém, era que a vida se desenrolava, cotidianamente, nas idas e vindas dos habituais fregueses daquele café. Quem freqüenta um café sabe a que me refiro: é uma questão de princípio e, escolhido um café, ela se torna o café. É como se cada freguês, que tinha seu horário e mesa certa, sua bebida exata, fizesse daquele lugar sua casa, um espaço só seu. E como da rua fosse possível observar tudo lá dentro, todos se sentiam observados pelo mundo que corria fora: todos os carros, transeuntes, podiam ver aqueles habitués em seus movimentos e pensamentos. Estavam expostos à curiosidade do mundo.
O café tinha um nome: Descartes. A dona, uma paraense e ex-proprietária de livraria, o achava um bom nome para um café, um lugar onde ela gostaria de ver todos imersos em reflexões, algo cartesiano. Havia muito de idealismo nisto e Berenice, a dona, o admitia. Mas, apesar dos habitués não serem os intelectuais que ela gostaria que fossem, Berenice gostava do seu café, o Descartes e, com o passar do tempo, percebeu que o melhor não eram os pensamentos, mas a fauna humana que ali se revezava durante o dia. De fato, havia de tudo um pouco no café Descartes, uma profusão de tipos que por ali passavam todos os dias, nos mais diferentes momentos. Pessoas que, na maioria das vezes, mal se falavam, mas que se reconheciam mutuamente como habitués do mesmo café. Era como um segredo compartilhado por todos. Não se falavam, mas sabiam entre si que dividiam, nem que por breves instantes, o mesmo café.
Berenice não imaginava mais um dia de sua vida sem aquelas pessoas por perto, pessoas que muitas vezes a aborreciam, mas que, ao mesmo tempo, preenchiam os espaços vazios de sua vida. Desde que se separara, após um ano onde, ironicamente, a convivência com seu marido tornara impossível a comunicação entre os dois, Berenice dedicara-se exclusivamente ao seu café, aquele pequeno lugar de uma esquina perdida no velho centro da cidade. Agarrara-se àquele lugar, àquelas pessoas, como se elas permitissem um mínimo de gozo na vida, uma pausa na solidão para onde, ela percebia, sua vida caminhava, como se o café Descartes e seus fregueses lhe servissem de senha para uma leveza momentânea, a única que lhe restara.
Por isso mesmo, Berenice odiava os domingos, único dia da semana onde o Descartes não abria. Menos por ela própria, mas pelos seus dois funcionários, a Elisa, cozinheira, e o Josafá, garçom. Elisa era uma senhora bastante recatada, evangélica, que sustentava 3 filhos com aquele trabalho. Mal era vista em seu trabalho na cozinha. Josafá sim, era um companheiro para Berenice, uma espécie de irmão mais novo. Ela adorava o jeito galhofeiro, contido num humor preciso e mordaz, daquele gaúcho de Cruz Alta, torcedor do Inter, ouvinte de chulas e xamamés e que se revezava como amante de duas mulheres casadas, uma delas habitué do café. Não fosse por Elisa e Josafá, Berenice certamente abriria aos domingos, dia morto no qual ela era obrigada a vislumbrar o vazio que tanto temia.
Era aos domingos, então, que Berenice sentia falta daquele povo que todo dia aparecia no Descartes e usava o café a sua maneira, delimitando espaços, vivendo rotinas íntimas, mesmo que observadas por qualquer um. Berenice sentia falta dos estudantes da faculdade de letras que, durante a manhã, se reuniam nas mesas, alguns para fazer seus trabalhos, outros para simplesmente matar aulas; do “seu” Melquíades e do “seu” Marinho, que ocupavam religiosamente a mesa do canto direito numa série interminável de partidas de damas; da Rosana, bela secretária da empresa ao lado, que entrava às nove; do João e da Valentina, casal que morava a uma quadra do café e que sempre iniciava ali seu dia, com o hábito de tomar café e folhear o jornal, pontuando as notícias com comentários e conversas que, Berenice percebia, eram pesadas e sérias – era ali que aquele jovem casal discutia sua relação; do Vinícius, professor de inglês que dava aulas particulares numa mesa do café, sempre às terças, quintas e sextas; da Dona Estefânia e as descrições de suas doenças todas; do Manoel, sempre lendo algum livro, sentado numa mesa próxima a uma das janelas e alternando a leitura com longas miradas para a vida que corria fora; da Beatriz, conhecida fotógrafa já aposentada, que vivia no mesmo prédio do café e que sempre descia no início da tarde e ali ficava conversando com Berenice; do Rolando, um portenho aqui radicado, completamente apaixonado por Nelson Cavaquinho, e que passava horas e horas numa mesa do canto observando as pessoas, conversando com todos e, às vezes, escrevendo pequenos hai-kais com que ele presenteava uma ou outra pessoa; da Laís, garota de programa que morava num prédio próximo e que marcava seus encontros no Descartes para depois ir a sua casa; do “seu” Dantas, antigo líder sindical preso na ditadura, além do Ramires, violonista que acompanhara Maysa numa de suas viagens ao exterior e que se gabava de ter tido um caso com a diva.
Berenice achava bela a presença destas pessoas. Havia algo de comovente naquelas rotinas que se entrecruzavam e estavam expostas aos olhares do mundo. Sim, ela amava aquelas pessoas e precisava delas. Eram seus irmãos. Seus filhos. Sentia-se viva entre eles, num momento de sua vida em que o que mais temia era a solidão. Sem estas pessoas e outras que freqüentavam o Descartes, Berenice sentia-se perdida e profundamente triste. Vinha-lhe então a angústia de pensar que esta falta, sentida aos domingos, um dia se estenderia ao restante da semana. Nesse momento, ao perceber a finitude de tudo aquilo, ao pensar que todas aquelas pessoas que povoavam sua vida e seus dias não estariam ali para sempre e que haveria um momento onde ela estaria realmente só, Berenice se lembrava de um dia em sua infância em que o pai lhe levara ao circo e de como, ao terminar o espetáculo, ela desejara dolorosamente que ele continuasse. “Tem mais?”, perguntava ao pai. “Tem mais?”. Mas o espetáculo não continuou. Terminara, simplesmente, como tudo em sua vida terminaria um dia. Sua infância, seus amores, seu pai, seu casamento, sua juventude, tudo. E então, nesse momento, a idéia que evitava sempre lhe saltava à mente, súbita e simples: a morte. Temia a morte porquê percebia que, muito provavelmente, estaria sozinha. Um dia, ninguém mais estaria ali e nada mais, café, habitués, transeuntes e carros, haveria. Seria somente Berenice e mais ninguém.
Assim, os domingos de Berenice passavam como meras expectativas e esperanças da segunda-feira. Ao contrário do habitual para a maioria das pessoas, as segundas eram vividas por Berenice com um grande alívio e até uma certa dose de esperança. Alívio porque o espetáculo continuara, esperança porque talvez ainda durasse mais um pouco. Como na infância, ela apenas desejava que tudo aquilo se prolongasse ao máximo, tingindo seus dias com um pouco da beleza que só as pequenas coisas humanas são capazes.

Sueños porteños

Bolívar:

El subte tiene siempre las mismas personas. Hay un hombre viejo con un pacote. ¿Que será? Miro con curiosidad. Tiene la elegancia de un porteño de los años 50, con su tierno azul. Tengo ganas de preguntarle cosas, pero es agradable solamente mirar. El hombre siempre salta en San Jose. Talvez sea un empleado, un abuelo, talvez un viejo peronista con sus recuerdos de 1955, talvez un boemio viniendo de la noche, talvez. En el subte, una mañana, hay siempre muchas cosas para mirar. No es preciso hablar nada: las palabras son tan pocas para esto. Un hombre viejo con un pacote en el subte.

Belgrano

Miro ahora una mujer que tiene una hija. La nena saca la lengua afuera para las otras personas y se ríe mucho. El subte ahora es un parque de infantes: todos tenemos cinco años y la nena nos guía en sus pensamientos. Yo soy un payaso y por la ventana miramos pezitos amarillos, azules, y ahora el subte no es más un subte, pero un submarino que flota como una burbuja. Y todo esto, de repente, se deshace con el movimiento del subte y nosotros, yo y la nena, nos miramos y ella se ríe mucho.

Independencia

Una mujer saca un libro. Yo confeso: no puedo ver alguien con un libro. Sí, es una compulsión saber que libro es, mirar las reacciones de la lectura (recuerdo una vez cuando miré una mujer leyendo Virginia Woolf en autobús y ella lloraba en silencio). El libro era una novela de Sábato y, de repente, pensé en Martin y Alejandra y los héroes y las tumbas de Buenos Aires. Y pensé también en la obsesión de Sábato con los ciegos (“ellos están por toda parte en Buenos Aires”) y miré en subte, pero no había ninguno ciego.

San Jose

Estoy entre San Jose y Santiago del Estero. Santiago del Estero tiene una sonoridad linda. Repito la palabra como una canción: Santiago del Estero, Santiago del Estero, Santiago del....

Entre-Rios

Sí, ahora la veo. ¿Quién será la chica que siempre toma el subte en Entre-Rios? No, no me atrevo a hacer preguntas. Sería poco elegante. Pero, me gusta demasiado mirarla por todo su trayecto, hasta Boedo, donde baja todos los días. Hay días donde parece estar triste, pero hay otros donde percibo un gozo infinito, como si ella viviera las mañanas porteñas con una gana indecible, como si las calles tuvieran un placer que ella, con el tempo, aprendió a disfrutar, como si el ritual diario de tomar el subte fuera un salto hacía el día. Así como yo, percibo que ella mira a todos en subte con una atención toda suya. No sé si es triste o alegre (tampoco esto importa) pero no tengo dudas de que ella tiene una sensibilidad gigantesca y que su presencia da a las cosas otro modo de ser, otro sabor. Es una delicia estar cerca de ella. El simple trayecto del subte gana otras colores cuando ella entra en Entre-Rios.

Pichincha, Jujuy y Urquiza

Aún miro la chica. Hoy está con un suéter negro y tiene su cabeza apoyada en la ventana. ¿Qué pensará? Tal vez desee un día de sol, tal vez desee estar en un teatro barroco o un cinema antiguo, tal vez un poema de Discepolo, tal vez imagine una carta a escribir, tal vez piense en un beso de cine. Tal vez juegue con sus pensamientos ¿Quién sabe?
Pero recuerdo, de repente, de una madrugada donde la vi en un parque con amigos. Quedé mirando, sin que ellos me vieran. En aquella noche, vi y oí sus sonrisos y su nombre era levedad y yo tuve la impresión de estar en un sueño. El parque quedaba en la esquina de un boulevard – Rosario Vera Peñaloza – con una calle llamada Julieta Lanteri (hay calles en Buenos Aires con nombres tan hermosos). Desde entonces siempre pienso en Julieta Lanteri, un lugar mítico, de sueño. No es nada, solamente una esquina, pero no tengo palabras para describir la levedad y la música de aquella noche. Una levedad que, para mí, es sinónimo de intensidad. Una levedad que, para mí, es sinónimo de la poesía.

Boedo

Y ahora, la chica se va. Ella no sabe que, a veces, pienso en ella como si fuera un personaje de una película, con sus sonrisos, sus músicas y encuadramientos y me pregunto si a ella gustaría los sambas de mi imaginación. Tal vez sí, tal vez no. Tal vez esto no sea importante. Lo que importa es que esta chica me ha dado una de las llaves (hay otras...) con la cual siempre miraré Buenos Aires.

La línea siegue abierta...

Mulheres segundo o Evangelho de São Jorge (versão apócrifa)

1. Que nega é essa

Os olhos negros de azeviche miram o espelho partido de um banheiro público em pleno sábado de carnaval. Jovem, não mais de 22 anos, usa batom de cor forte, mas a maquiagem é suave. A pele é quase escura: mel. As mãos, finas de dedos compridos e unhas vermelhas, remexem a pequena bolsa de poucos recursos, à procura de um cigarro perdido entre chaves, batom e pequenos papéis. Levanta novamente os olhos e se mira no espelho: a boca, o queixo fino, o pescoço, o colo. Acha-se dona do mundo. “Trouxa”, pensa. “Casar? De vestido branco?”. Ri da própria dissimulação, mas acha que mesmo assim vale à pena faturar alguma coisa em cima daquele otário.

2. Cadê Tereza?

Enquanto o Tavares, funcionário de uma papelaria e torcedor do Madureira, a procura desesperadamente, Tereza pode ser vista num samba próximo à rodoviária (e não no morro, conforme versões posteriores ao crime), completamente bêbada e entregue aos braços de Pedrão (este, obviamente, um torcedor do Flamengo). Tereza não gosta de futebol, mas a esta altura do campeonato prefere os flamenguistas. Mal sabe ela que, mais tarde, no cemitério São João Batista, amigos, desinformados quanto à razão da sua morte, mas condoídos pelo suicídio de Tavares, enterrarão os dois sob uma bandeira do Madureira. E ainda cantarão o hino.

3. Ive Brussel

Ive adorava passar as férias no Brasil. Nas últimas, há cerca de um ano e meio, foi ao Rio e a Salvador. Na capital carioca, encantou-se com um músico, meio desconfiado e sem jeito (quase calado), mas cheio de swing, chamado Jorge Duílio, que, encantado pela moça, lhe compôs uma canção. Apesar disto, Jorge Duílio foi rapidamente esquecido quando Ive desembarcou em Salvador e conheceu, num papo-cabeça, um estudante de filosofia cabeludo – que também cantava, e era até bonitinho com sua voz de cantor – chamado Emanuel Teles, que igualmente lhe compôs outra canção. No entanto, o baiano logo a cansou e ela voltou para a Bélgica achando os homens brasileiros, apesar das belas canções, um pouco grudentos e um tanto quanto melosos. Resolveu ser prática em matéria de homens e atualmente namora um boxeador (peso pena) ucraniano que ela conheceu num bar em Bruxelas. À propósito: a única coisa de música brasileira que o namorado de Ive conhece é Sepultura.

4. Cinco minutos

Eu não podia esperar mais. Não, eu não podia. Se ele falasse um pouco mais, eu não poderia voltar pra casa. Nunca mais. Eu gosto dele, mas não posso largar tudo assim. E os meus filhos? E o Zeca? O Zeca é tão bom pra mim e não merece isto. 5 minutos: foi o que o outro pediu para me dizer tudo. 5 minutos não é nada, eu sei. Mas eu não podia, eu não posso. Vi que ele ficou mal. Eu vi e sei o que estou perdendo. Eu o amo, mas é melhor assim. É. É melhor assim. O Zeca e as crianças não conseguiriam ficar 5 minutos longe de mim.

5. Bebete vão embora

Quando Bebete acordou eram mais de onze horas. Seus olhos pesavam e sua cabeça parecia uma gangorra. Acordou com os berros do seu filho, que ainda não havia mamado. Gritou para a irmã ordenando que desse um jeito naquela criatura estúpida. O samba da noite anterior estava muito bom e ela precisava dormir. “É tão bom ser casada com um homem que trabalha”, pensou enquanto se virava para se agarrar de novo ao sono.

6. Meus filhos, meu tesouro

Quando criança, Anabela era chamada de gorda, inclusive pelo pai. Uma tremenda injustiça, já que ela era magra. Cresceu traumatizada pelo estigma e resolveu se vingar da vida: montou um consultório que atende precariamente, pelo SUS, mulheres com problemas de obesidade. Duas morreram devido a lipoaspirações mal feitas e Anabela teve que se esconder por uns tempos. Foragida, não pôde realizar seu projeto de vida: ser uma dona de casa atuante, de preferência casada com um milionário.

7. Xica da Silva

No morro do Tijuco todos sabiam: ninguém podia sequer olhar para a Xica, mulher do Joãozinho Fernandes, maior traficante da cidade. Xica adorava jóias e tinha uma especial predileção por diamantes, o que Joãozinho, ávido pelos deleites proporcionados pela moça, satisfazia regularmente. Todos sabiam, contudo, e ninguém dizia um isto, que Xica tinha seus casos: aliás, hora ou outra, ela descia o morro caçando suas presas. E ai deles se fugissem. Definitivamente, contrariar Xica não era um bom negócio.

domingo, junho 21, 2009

Pequena carta para um velho amigo

Caro Erik,

há muito tempo penso em lhe escrever. Mas hoje, particularmente hoje, numa noite fria de um céu sem nuvens, com todas as estrelas ao alcance das mãos (e, devo admitir, com este vinho...), você me pareceu tão próximo, tão presente que, tenho certeza, não vai se importar de eu lhe escrever algumas poucas palavras. Enquanto te escrevo, Erik, escuto sua música. Uma das Gnossiennes. A de número um. Esta música me diz tanto, você nem imagina o quanto. Adoro te imaginar tocando isto em alguma noite quente em Paris, com folhas vermelhas e azuis e verdes, tais aqueles quadros de Monet. Esta música me traduz tanta coisa que eu nem sei escrever. Imagino uma brisa, uma tarde de verão, um fim de tarde, um daqueles retratos parisienses, um autocromo dos Lumiére. Isto: imagino um dia com aquelas cores. Dia desses fui a um museu ver estes autocromos e, te confesso, entre envergonhado e solitário, chorei. Discretamente, mas chorei. Pensei em você na hora em que entrei na galeria. Tua música me veio como um fardo. Em cada olhar, em cada gesto daquelas fotos, havia você e seu piano. Eu estava acompanhado de uma pessoa a quem prezo muito. E tudo pareceu perfeito: os Lumiere, a minha companhia, a tua música. Por isso, só por isso, emocionei-me. Passei dias pensando em te escrever só para contar isto. Bobo, não? Talvez. Mas não ria de mim. Você tem o dom de me desnudar. Tua música faz isto: me desnuda, desvela. Fico sem proteção alguma. Não é o único que faz isto. Mas o faz de um jeito singular, como nenhum outro.
E eu, desprotegido, te confesso, Erik, aqui estou solitário numa noite de sábado. Meus amigos estão longe e meu coração... meu coração nada faz senão bater. Serei um insensível? Serei um monstro? Não. Tenho certeza que não. Tua música me diz que não. Cada vez que te escuto, sobretudo aquelas em modo sentimental, sou tomado de um furor, um sentimento absurdamente vivo. Um poeta escreveu certa vez: "esta lua, este conhaque, botam a gente comovido como o diabo". É isto: sua música me deixa tão comovido que me garante que estou vivo. Eu me refujo na sua música: cesso todas as relações, todas as palavras. Ali, somos apenas eu e os sons. Mais nada. Há tempos que eu te uso para isto. Para sentir-me vivo.
Gosto das tuas músicas tristes. São noturnas como agora são duas da manhã e o vinho é apenas um passado remoto. Mas eu sei que tua melancolia revela também um senso de humor absurdo. Me reconheço nisto. Você nem imagina o quanto. Eu rio, Erik. Rio de mim o tempo todo. Minha sanidade depende disto. Houve um tempo em que achei isto ruim. Hoje preservo isto como meu maior dom. Rir de si. Eu sei que você ria de você também. E, por isso, entendo a melancolia das tuas músicas. Uma melancolia feita de fins de tarde impressionistas. Uma melancolia feita de pedaços de memória, pequenos gestos e tardes de sábado.
Moro numa cidade pequena, Erik. Há dias onde o silêncio da minha rua me surpreende. Ouço apenas o vento. E penso na tua música. Ouço o azul do céu. Um céu azul, sempre, sempre sem nuvens que, no inverno, tende ao escuro e é lindo. O vento é azul na minha cidade. É puro impressionismo. Ao lado da minha casa há uma construção, um prédio a ser levantado por uma família. Pois dias desses, resolvi fazer um passeio num domingo à tarde e vi a família toda reunida num almoço em um prédio em construção. Em meio a argamassas, tijolos e madeiras, havia uma mesa, com pano quadriculado, um perú bem no centro, e algazarra típica de um família de domingo: o pai, a mãe, taciturnos, os filhos bagunceiros, o tio debochado. Pensei, de novo, na tua música. Aquilo era tão íntimo, como os autocromos dos Lumiere. Senti-me invasivo e invejoso. Inveja daquela intimidade, daquela simplicidade familiar da qual me lembro em fios de memória que ainda resistem, mas que se encontram cada vez mais esgarçados. Fiquei tão emocionado! Uma simples família de alemães no interior de um estado do Brasil. Tão longe da sua música, mas tão perto!
E hoje à noite, é isto. O silêncio da minha casa. Uma certa melancolia feita de sábados. À minha direita, um livro de um conterrâneo seu, chamado Michel Leiris. Dele tomo uma epígrafe que talvez lhe diga algo:
"Eu sozinho. Sinto meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que vi; ouso acreditar não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho mais, ao menos sou diferente..."
Isto é Rousseau e eu tenho certeza que você não discordaria. Tua música, aos meus ouvidos, soa como esta frase: "Sinto meu coração e conheço os homens". Sempre que o verbo sentir me bate à porta, tua música me ajuda a abri-la.
Do seu,
João Pedro de Andrade

sexta-feira, junho 05, 2009

Saudosismo ou "João girando na vitrola sem parar..."

Hoje à tarde deparei-me, lendo um texto, com a palavra saudosismo. Tanto a palavra quanto a idéia me estimulam a imaginação. Este blog, em certa medida, tenta dar conta do meu saudosismo, crime do qual sou réu mais do que confesso. Porém, passei o resto do dia imaginando um texto a ser escrito com este título. Fuçando nas minhas coisas e na internet cheguei a uma canção de Caetano Veloso, de 1969, intitulada "Saudosismo". Eu já conhecia a canção há muito tempo, mas havia me esquecido dela. Foi gravada pela Gal Costa, em 1970 (Caetano fez para ela) e só nos anos 80 pelo autor.
"eu, você, nós dois, já temos uma passado meu amor/um violão guardado, aquela dor, e outras mumunhas mais" (mumunha é uma das palavras de que mais gosto). "eu, você, nós dois, quarta-feira de cinzas no país". E por aí vai...

Ouvi a canção durante o resto do dia e desisti de escrever. As palavras (e a música) de Caetano, hoje, valeram o dia e qualquer texto.

Deixo aqui o link uma gravação com o próprio autor.

quinta-feira, maio 14, 2009

Singles

Josileide vai, aos sábados, visitar os pais. Faz isto antes que eles venham a sua casa.

André separou-se há três semanas. Não há perspectiva de volta. No primeiro final de semana foi a um puteiro no centro da cidade – pela primeira vez na vida. Transou com uma moça de codinome Karen, depois de barganhar por trinta reais. De cem, ela baixou o preço para setenta.

Vanessa passa as noites de sexta fumando maconha. Adora se masturbar quando está chapada.

Lucinda nunca teve ninguém, senão um namorado quando adolescente, numa pequena cidade do interior. Agora, aos 43 anos, passa os sábados em casa, vendo seriados e comendo balinhas. Lucinda, vez ou outra, suspira pelo marido de uma vizinha no prédio. “Ela tem só 22. Pode arranjar outro”, pensa.

Depois de um mês saindo com Leila, Marcos acordou no meio da madrugada. Mirou a moça nua, estendida sobre a cama. Achou-a linda e percebeu que sentiria sua falta. Foi embora assim, sem nada dizer. E, durante um tempo fugiu dos insistentes telefonemas de Leila.

Allan, quando se sente só, tenta escrever. Adora escrever cartas que jamais envia.

Davi tentou se matar duas vezes. Planeja uma terceira.

Fernanda dorme com a luz do quarto acesa. Tem pavor do escuro e, pra falar a verdade, anda com medo até de dormir. Ultimamente, tem se dedicado a sessões noturnas de muito café e livros. Mais alguns dias e ela terminará de ler a obra completa de Philip Roth.

Adriano vence os domingos, o dia que em que ele percebe que está só, ouvindo música em um volume ensurdecedor. Seus vizinhos não agüentam mais ouvir os discos de Jay McShann, Dizzy Gisllepie e Velvet Underground.

Mariana tornou-se bissexual depois de sua separação. Atualmente está saindo com uma DJ alemã cheia de tatuagens e com o irmão de seu chefe. Ele tem insistido num encontro a três, mas ela teme que a DJ se interesse por ele.

Maristela passa o fim de semana em casa, aproveitando o pouco tempo livre para se dedicar à filha de oito anos. Vez ou outra deixa a filha na casa de alguma amiguinha e se tranca em casa onde se entrega a sessões de blues e crack.

Dona Ivonete acabou de cair e, por azar, bateu a cabeça na pia. Bem que seu filho havia dito que era necessário contratar uma enfermeira, para não deixá-la só desde que ficara viúva. Agora, ficará ali, morta, até que algum vizinho sinta o cheiro e chame os bombeiros.

Bernardo resolveu aprender trompete. Já tentou violão e piano, mas desistiu. Jura que tem vocação para a música.

Eliza recebe visitas de um homem bem mais velho, casado. Quase tudo na casa dela é presente dele, inclusive o armário de compensado na cozinha e o jarro em cima da geladeira. Até terminar a faculdade, ela pensa que vale a pena ficar com ele.

Luís instalou na área de serviço um saco de areia onde pratica exercícios de boxe ao som de hip-hop. Seu objetivo é participar de um campeonato amador de boxe e vale-tudo.

Selma adora receber amigas em sua casa, onde passam horas bebendo vinho, escutando Amy Winehouse, fumando e dividindo intimidades masculinas.

Danilo está tentando aprender a fazer bolo. Para isto aproveita um livro de receitas da ex-namorada, que ele surrupiou um dia antes de ser dispensado. Danilo, contudo, precisa comprar um liquidificador.

Luciano vive como se fosse observado. Assim, dentro de casa, encena poses e dramas. Há quem diga que é caso para internação.

segunda-feira, abril 13, 2009

A maçã e o elefante

“Homens, perdoem-no, pois Ele não sabe o que faz”
O Evangelho segundo Jesus.

Foram necessários mais de vinte tiros para liquidar o elefante. Um dos tiros foi dado dentro de sua orelha, arrebentando-lhe a cabeça a partir dos tímpanos. O elefante levou horas para morrer e enquanto agonizava, chegou a ver seus algozes serrando suas presas e mirando-o com temor, satisfação, sadismo e respeito. Enquanto os mirava, seus olhos repousaram sobre mim, um mero leitor sentado dentre de um ônibus em uma cidade de céu cinza. Seus olhos tinham o silêncio da morte inevitável; os meus tinham o grito histérico do desespero. Seus olhos tinham a secura da sabedoria, do ascetismo; meus olhos eram lágrimas de vícios e masturbações.

Tive ganas de descer do ônibus enquanto aquele elefante agonizava por páginas e páginas de um livro que, ironicamente, falava do paraíso.

P.S: à propósito, o elefante foi morto por Deus-pai, travestido de caçador.

segunda-feira, março 16, 2009

Only Tom Waits saves (ou réquiem para descrentes)

Ontem à noite sentei defronte a um boteco. Pedi uma cerveja, uma dose de cachaça e fumei um charuto. Desfrutei tudo no mais completo silêncio. Quase um desespero o meu silêncio, porém vivo, muito vivo. Eis então que um marido esbofeteia a esposa na mesa ao lado. Eu lia um conto de Cortázar (sobre Che). Parei a leitura, pus o livro sobre a mesa e mirei a mulher, que caíra ao chão com o tapa. Nos olhamos. Quanto durou? Um segundo, dois, talvez? Não sei, mas o suficiente para ver no seu desespero o silêncio da morte.
Voltei à minha leitura.

P.S: e ela voltou aos braços da marido. Quando fui embora, às duas da manhã, os dois beijavam-se apaixonadamente.

Substância

Por que éramos os dois olhando a mesma janela. Eu e ela buscávamo-nos assim, por um vidro sem cortes, completamente transparente ao tempo. E mirávamos a janela de uma tarde de janeiro apagada pelo tempo, com a esperança de muitos janeiros e marços e carnavais. Por que éramos os dois tateando em vão as perguntas envoltas no ar do impossível, daquilo que não pode ser dito sem o preço da ofensa. Tateávamos às sombras de uma infinita ternura, por vezes azeda, tal um vinagre negro a se impor sobre a mesa durante um almoço de domingo. Porém, do azedume partíamos para um silêncio que nos constrangia e salvava-nos antes do fim da tarde. Salvos, porém culpados. Por que éramos os dois desesperados pelo corpo, corpo, corpo, visto sempre de lado, nunca de frente, como um caroço que se evita, mas que se busca até o fim de uma fruta suculenta. O sumo não tinha gosto, mas dor. Por que éramos os dois, somente os dois, mais nada. Não havia fiadores: por isso tudo era espera e resignação. Esperávamos o dia em que confrontados, perguntaríamos: por que somos os dois? E nesse dia vimos que a janela tinha ranhuras profundas. Sentamos e miramos de mãos dadas a chuva que caia numa quarta-feira feita de papéis brancos e verdes e brancos e rubros. Nada dissemos, por que sabíamos que éramos os dois, conjugados pela última vez.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

Antígona's Dark Shoes

... a estrada parece não ter fim enquanto aquela mulher carrega pela mão um homem cego de outroras lendas. fora um bravo, decifrara a charada dos homens e agora, ali, cego como veio ao mundo, era guiado pelas mãos de uma mulher. a estrada nunca teria fim, não porque faltasse um destino, mas porque ele jamais o veria.

para sempre ele seria guiado feito uma criança não pelo filho, mas pela filha. a ela caberia salvar o pai da escuridão sem fim de todos os caminhos. a voz do pai, uma vez a lei do mundo, agora era uma súplica pelo fim de uma estrada que jamais chegaria. e ele maldizia, xingava, ofendia, a filha que insistia naquele caminho.


porém aos olhos de Antígona nada disto era um fardo. estava ali, com seus sapatos negros e um velho vestido que antes vestira uma outra mulher que se matara pelo remorso de ter gerado a ela, Antígona; ali, guiando pela mão o único homem que amara e que se recusara a abandonar. outros homens passaram, mil vezes colhera o gozo alheio em suas faces, mil vezes quedara deitada em silêncio enquanto algum homem, crente de sua importância, lhe dizia: "estou indo". e seu silêncio significava "que bom que isto acabou". mil vezes teve mil homens. porém nenhum como ele, o pai, agora tornado filho. e a ela, somente a ela, caberia salvar o pai do silêncio de um caminho escuro.


e ela já não sabia mais se tomava seus braços como acolhimento ou se o tomava em seus braços e lhe oferecia os seios como salvação.


isto não importava. agora era ela e ele. a filha e o pai, tornados mãe e filho.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Arrombamento

... eu juro: estou há dias atrás de um mísero mote, uma palavra, uma idéia, uma cena, o que for. estou atrás de quê? já nem sei. penetrei surdamente no reino das palavras e nada. penetrei então com ruído, feito um vendedor ambulante da 25 de março, um vascaíno em dia de clássico, um evangélico no culto. de novo, nada. esse Drummond me enganou. mineiro entojado. bem sei que não se deve confiar em mineiros.
com raiva dele e das palavras apelei para a ignorância: invadi o reino das palavras sem pedir licença. literalmente, arrombei a porta. algumas resistiram e talvez eu não possa usá-las. paciência. as palavras que reclamem pro bispo. e se quiserem levem o Drummond junto.
chega, palavras. acabou minha paciência. agora o dicionário onde vocês estavam mudas e sós se chama "meu desejo".

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Grandes Momentos da Inveja ou Textos Que Eu Gostaria de Ter Escrito

O romance chama-se "A Trégua", do uruguaio Mário Benedetti. É de 1960 e há tempos eu o namorava, curioso. Algo me dizia que eu iria gostar. Certa vez, li um pequeno livro de poemas de Benedetti - "Poemas de hoy por hoy" - o que me deixou ainda mais curioso. Dizem as más línguas entendidas que, junto com Juan Carlos Onetti, Benedetti forma a dupla mais importante da literatura uruguaia moderna.
Independente das más línguas, por razões diversas "A Trégua" veio parar em minhas mãos há três dias. Edição de bolso, daquelas da LP&M. De fato, estou gostando. Tanto que leio lentamente, com medo de acabar.
"A Trégua" conta a história de Martín Santomé, um funcionário público de 49 anos, prestes a se aposentar. Sua vida chama-se regularidade. Viúvo, três filhos, espera apenas a aposentadoria chegar. O livro é escrito na forma de um diário, na primeia pessoa, no qual se revela um daqueles personagens fascinantes: completamente só, absurdamente regrado, totalmente inerte. Ele não ama, não deseja, não ambiciona. Está entregue a uma liberdade com relação aos próprios anseios que ele define como inércia. "Liberdade é o outro nome da inércia da minha vida". A liberdade é azul, diria um filme.
Eis que aparece Laura Avallaneda. Vinte cinco anos mais jovem, sua funcionária na repartição e que desperta em Santomé algo adormecido, esquecido, pretérito. Será possível manter-se livre?
Compartilho aqui um momento belo do livro, no qual Santomé vai a uma feira, num domingo, planejando um encontro casual:
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Domingo, 12 de maio
....Em nenhuma parte encontrei seus olhos. Apesar disso (somente agora me dou conta), não sei como eles são, nem de que cor. Retornei cansado, aturdido, incomodado, aborrecido. Ainda que haja outra palavra mais certeira: retornei solitário.
Segunda-feira, 13 de maio
São verdes. Às vezes, cinzentos. Estava olhando para ela, talvez com demasiada insistência, e então ela me perguntou: "O que há de errado comigo senhor?". Que ridículo que me trate por "senhor". "Tem uma mancha no rosto", respondi, como um covarde. Passou o indicador pela maçã do rosto (um gesto bastante característico seu, que puxa o olho para baixo e que não lhe cai bem) e voltou a perguntar: "E agora?""Agora está impecável", respondi com um pouco menos de covardia. Sorriu, e eu pude acrescentar: "Agora não está apenas impecável, está linda". Creio que se deu conta. Creio que agora sabe que alguma coisa está acontecendo. Ou terá interpretado o que eu disse como um elogio paternal? Tenho nojo de me sentir paternal.
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Não sei explicar o porquê, mas achei esta passagem singularmente bela.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Litania

Foi num mês de outubro que descobri os tangos: Troilo, Piazzola, Pugliese, todos eles passaram a fazer sentido para mim num mês de outubro. Foi num mês de outubro que compreendi a dimensão do amor de Oliveira, perdido entre sua arrogância absurda, seu clube da Serpente, e seu amor angustiado, que se desdobrava feito um guarda-chuva atirado por dois amantes no parc Montsouris. Foi num mês de outubro que todas as calles de Buenos Aires, com suas paredes negras e seus boliches desertos pela madrugada se desdobraram para mim. Foi num mês de outubro que ouvi pela primeira vez a minha voz. E o que eu disse? “Estou perdido”. E disse isso com um misto de desespero pelo conteúdo e de alívio pela forma, como se na minha voz estivessem guardados 32 anos de segredos, sujos, covardes, infantis, puros, bobos, obscenos, lindos, afetuosos. Humanos. Foi num mês de outubro que me encontrei, ironia suprema, com o meu desejo.

Foi num mês de outubro que mirei pela primeira vez meu pai e descobri que jamais poderia salvá-lo como Pinocchio faz com Gepeto. Porém, foi também quando percebi que ninguém me salvará da solidão e que todos nós estamos dentro de uma baleia. Descobri o limite das minhas forças, revelei minhas fraquezas e, ao mesmo tempo, tornei-me mais forte. Ou será insensível? Foi num mês de outubro que chorei pela última vez e descobri que nunca havia chorado.

Num mês de outubro me descobri numa escada de uma casa de dois pavimentos, escada que hoje, nos raros acessos que permito à poesia, ouso chamar de juventude. No andar de baixo, a inocência e a perversão de um mundo feito de avós, jabuticabas, músicas e acalantos maternos. No andar de cima, a solidão sensual de um mundo feito de giletes, tabaco e vinho.

Foi em outubro que me vi atravessado por um dardo e descobri que, sim, chegara o meio-dia da minha vida, onde as perguntas não mais poderiam ser guardadas em velhos armários cujas portas rangiam ao peso do já-vivido. Outubro foi um mês no qual mirei os olhos do amor e vi o que há de mais trágico neste sentimento: que ele subsiste o tempo todo se transformando. “O amor é uma torrente contínua”. Li isto num mês de outubro. Sim, é contínuo. Ele nunca acaba. Mas sempre é outra coisa.

Outubro e descobri que só me resta amar, além das manhãs de domingo como consolo. Os amantes? Estes são como a melodia de um blues: duram o tempo suficiente para uma linda canção.

sábado, setembro 20, 2008

Blues





Tenho o papel diante de mim e, ao meu redor, um vazio infinito. Minhas mãos estão mudas e meus olhos não mais procuram tatear entre ombros alheios e dores mal disfarçadas. Minha casa chama-se silêncio.

E desse silêncio nasce a memória de dias findos onde as palavras, sobretudo as palavras, faziam dos meus sábados e dos meus domingos um acolhimento, daqueles de quintal-pé-descalço-manga-no-pé.

Tudo que eu gostaria era traduzir aqueles dias. Mas a luz deles era intensa que não caberiam no papel.

Tenho o papel diante de mim e, ao meu redor, meu cachimbo e um disco de blues. O papel que me perdoe.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Réquiem

De Lúcia lembro, sobretudo, os silêncios. Eles me acariciavam, envolviam-me. Ninar – meninar, me ninavam. Davam-me uma paz, um sentimento esquisito de amparo. Os silêncios de Lúcia desafiavam o tempo da minha solidão. Neles eu me embrenhava feito um garrote desgarrado, um noviço. Lúcia não sabia, mas seus silêncios eram a minha razão de ser. Como eu gostava de estar ao seu lado naqueles momentos de domingoazulcéu e nós, nós, nós, nós dois em silêncio andando horas pelo centro daquela cidade vazia. Éramos nós dois tal feito um nó górdio a que nada no mundo era capaz de separar. Éramos nós dois tal feito dois infantes na inocência de anjos de um quadro renascentista. Éramos nós dois e só: somente a cidade de testemunha. Suas esquinas provam. Seus prédios confirmam. O asfalto? Nosso leito. Postes? Abajures. Pedestres e carros? Estes não existiam. Percorríamos ruas, olhávamos arquiteturas, sentávamos em praças, espiávamos janelas, víamos bêbados e pederastas e nos encantávamos com a cidade. E nosso encantamento se traduzia para mim no silêncio de Lúcia. Pois eu sabia que naqueles momentos de silêncio, Lúcia estava como nunca mergulhada em nós.

Mas de Lúcia lembro também dos olhos. Acolhedores. Curiosos. Intensos de não mais se esquecer. Impossível olvidar os olhos de Lúcia. Diante deles parecia que nada era indiferente e tudo era distante ao mesmo tempo. Olhos de se devorar. Olhos de se medir. Lembro de quando eu, ainda absorto em uma vã tentativa de tocar a música do mundo, sentava em um canto e dedilhava uma velha canção dos Beatles – que ironicamente falava do que ficou no passado – lembro-me de como Lúcia somente me mirava, como se ela soubesse de uma grande verdade sobre mim (e de fato, ela sabia). Aqueles olhos me desafiavam, me excitavam. Aqueles olhos buscavam o livro do mundo para nele inscrever novas palavras, riscar no céu os versos mais bonitos. Lucy in Sky with Diamonds.

De Lúcia guardo a lembrança de tardes infindas de inverno onde, ao som de copos de chá, revolvíamos a prosa do mundo. Nada existe que não se fale nesta mesa de bar. Lúcia dizia rimmel e marxismos; sabia de magias das terras sudanesas e os ascendentes todos; Bach e Magritte. E lá pelas tantas eu desistia de uma interlocução imensamente prazerosa, porém inútil, e me colocava onde jamais saíra: na posição de noviço. Lúcia me ensinou quase tudo que eu sei.

Ela era a minha verdade. O norte. Eu, à época, um menino, não desconfiava do tamanho do seu lugar na minha vida, tampouco da imensidão do espaço que ocupara em meu coração. E assim como os dias se sucedem e ao outono segue-se os dias frios, Lúcia e eu nos perdemos, nos deixamos ficar em algum lugar do qual, anos depois, só posso lembrar contritamente: e choro, menino, choro.

Eu não sabia, mas minha vida se resumiu a Lúcia. Hoje, aqueles anos só existem na minha memória: não há mais cidade, dias frios, silêncios, palavras. Há apenas um homem velho que se recusa a esquecer, pois sabe que viveu um grande amor. Vidamor.

quarta-feira, julho 09, 2008

Aviso aos possíveis navegantes

Vez ou outra, o autor se dirige à beira de um rio que tem três margens. Dessa vez, o rio, que sempre lhe pareceu assustador, tornou-se familiar e o autor ainda se encontra ali, à margem, cutucando velhas perguntas. Por isso, a ausência de escrita neste espaço. Porém, eles, o autor e o espaço, continuam vivos, muito vivos.

Até breve,

João Pedro de Andrade

domingo, maio 11, 2008

Corolário para Umberto Eco

escrito após o post anterior.

Sentou-se à mesa diante de uma folha em branco, disposto a escrever. Mirou a grande janela que dá para a cozinha e tentou lembrar do último momento no qual teve certeza de estar feliz. Sim, ele lembrou de um instante. Porém, já se iam alguns anos e ele percebeu que em sua memória não somente os fatos se esvaiam, mas também a própria sensação de estar feliz.

Talvez chegue um dia onde ele não se lembre mais do que é estar feliz. Nesse momento, o branco da folha se tornará a noite sem volta do esquecimento.

Eu me recuso a esquecer.


A condição da escrita (Umberto Eco)

"Sinto-me feliz agora...e talvez seja essa a razão pela qual escrevo, para encontrar esses momentos muito breves de felicidade que consistem em relembrar momentos da própria infância. Sim, é por isso que escrevo".

quinta-feira, maio 08, 2008

A condição da escrita (Fernando Pessoa)

"...se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir".

A condição da escrita (João Cabral de Melo Neto)

"Saio do meu poema
como quem lava as mãos..."

A condição da escrita (João Cabral de Melo Neto)

"Saio do meu poema
como quem lava as mãos..."

A condição da escrita (Milan Kundera)

"Nós escrevemos livros porque nossos filhos se desinteressam de nós. Nós nos dirigimos ao mundo anônimo porque nossa mulher tapa os ouvidos quando falamos com ela".

A condição da escrita ( André Gorz)

"É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca [...]; ter apenas esta vida"

domingo, abril 27, 2008

Ana e Murilo

Ela

O dia mal havia surgido e ela estava de pé na cozinha. Uma chaleira vermelha esquentava a água para o café. Forte, como gostava. Estava ali havia tempos, acordara de madrugada e não mais conseguira dormir. Pedro permanecera no quarto, esticado entre os lençóis, paralisado em algum sonho. De uns meses para cá, ela andava acordando mais cedo do que de costume. Alguma coisa a interrompia no sono.
Adorava ficar na janela grande da área de serviço enquanto a água fervia. O barulho da calefação combinava com os telhados que observava atentamente, assim como alguns moradores das casas, levantando para mais um dia. Havia um gordo na terceira casa, à esquerda. Todo dia ela o via ir ao quintal, buscar uma toalha. Em alguma casa alguém escutava um programa de rádio AM e suas músicas sertanejas. Ela adorava esta hora do dia. Esticava este prazer de observar sem ser vista o máximo que podia. O máximo: até a chaleira lhe avisar que era hora do café.
Pois enquanto observava o gordo ao som da música sertaneja, em baixo volume, percebeu que estava triste. Alguma coisa a incomodava havia tempos. Uma sensação ruim tomou conta de si: o que havia? Sua mãe lhe dissera, dias antes, que não parecia feliz. Tal observação a incomodara. Não ousara retrucar: exatamente por isto ficara incomodada. Sua mãe a conhecia.
Feliz? Parecia que a janela tinha a resposta. A chaleira lhe chamou. Pensou em fumar um cigarro. “Muito cedo, Ana, muito cedo”, disse a si própria. Àquela hora a cozinha era de uma luz linda, toda vinda da janela grande da área de serviço. O café era forte, como gostava. Tomaria lentamente, só, como estava fazendo nos últimos meses.
Só.

Ele

Quantas vezes se masturbara aquele dia? Perdera a conta. Quantas vezes se masturbara nos últimos dias? Não poderia dizer. O dia começava e terminava assim: era seu único vício. Havia tempos deixara de beber. Vez em quando se permitia um cigarro. Mas eram raros. Seu único vício era a masturbação. Palavra horrorosa que, por vezes, lhe atrapalhava o próprio ato. Evitava pensar no nome. Porém, de tempos para cá, isto era a todo instante. Nem gozava mais. Era simplesmente a sensação de ter um pênis. Objetivo. Possível..
Sim, havia um trabalho. Textos para o jornal. Sim, havia algumas pessoas. Conhecera, recentemente, uma paulista. Saíram algumas vezes. Ela bem que tentou cercá-lo. Mas ele não permitiu que ela se aproximasse. Algo o impediu. Sabia o que era, mas não ousou sequer pensar no assunto. Não via nada disto, textos e paulistas, senão como burocracias a que estava condenado.
Quarta-feira. Duas da tarde. Ele, nu, diante do computador. Texto aberto em sua frente. Mãos sobre o seu corpo e pensamento sobre um corpo distante. Ele sabia que aquilo era demais e que ele não deveria alimentar sequer os pensamentos. Mas, no ódio da sua posição, vencido pela timidez, resolveu vingar-se de si mesmo e deixou-se levar.

Ela

Entrara numa loja qualquer do centro. Uma loja de roupas. Não queria comprar nada, senão olhar, olhar, olhar. Pedro lhe exigia uma vaidade que nunca lhe caíra bem. Usava salto para agradá-lo. Não que não gostasse. Mas usaria menos, caso estivesse sozinha. Um pensamento lhe tomava de súbito: “ele me sufoca”. Não queria pensar nisto. Não queria pensar em Pedro. Se o fizesse, o grito lhe seria inevitável. Não. Ela estava feliz. Casara-se com um homem que a amava. E mais: que a amava absurdamente. Ela sabia que era um brinquedo, um objeto, algo de posse, para Pedro. E, no começo, isto lhe dava segurança: saber que ela era dele. Então por que aqueles pensamentos? Aquela estranha sensação de que algo a mais havia. Desde uma certa noite quando foram jantar. Ali começou. Ela, Pedro e Murilo, um velho amigo de seu marido. E bastou Murilo pronunciar a primeira palavra. Bastou mirá-lo, por um segundo, nos olhos. Bastou o primeiro encontro para que uma vertigem tomasse conta de si. Para que o pensamento “sinto-me só diante de Pedro”, “sinto-me ofuscada por ele”, lhe viesse à mente. Murilo e sua voz olhos suspiros gestos lhe davam uma sensação, estimulante e horrível ao mesmo tempo, como se neles estivessem a chave para si. E era disto que ela fugira sempre. De si própria. Murilo significava o poço sem fundo de si mesmo.

Interlúdio

Em “O Céu que nos Protege”, Paul Bowles monta um triângulo amoroso envolvendo um casal e um amigo, todos americanos: Port e Kit, Turner. Os três viajam pelo Saara em uma jornada cujo centro é a tentativa de Kit e Port de se reencontrarem depois de 10 anos de casamento. Turner, nesse sentido, é um mero brinquedo, muito diferente de Murilo – não há paralelo entre os dois. Ao contrário de Ana, Kit ama seu marido. A terceira pessoa, nesse caso, não passa de um momento de repouso para uma melodia que exige muito de seus solistas. No entanto, Kit e Ana têm em comum o fato de amarem justamente aquilo que lhes é desconfortável, aquilo que, sabem, as confrontam consigo mesmas. É exatamente este encontro que as assusta. Há, em todos os lugares, pessoas que fogem de si, o tempo todo. De suas perguntas, de seus medos, de suas ambições. Para elas, a relação amorosa é um ponto de fuga, um porto seguro contra os próprios demônios. A maioria das histórias amorosas de Hemingway, por exemplo, é feita desta matéria: amores que são, antes de tudo, redenções, desvios de trajetos destinados à queda. Nestes personagens, nestas pessoas, o encontro consigo mesmo significa a morte. Sempre me fascinou Sommerset Maughan terminar um dos seus livros (“O Fio da Navalha”) dizendo que um dos personagens (“Sofia”) buscava a morte. Pois Kit e Ana a temem e percebem que suas relações amorosas as colocam diante dela. Para Kit, amar Port era penoso porque este lhe dava uma visão do mundo que a desconcertava e lhe punha medo – Port não tinha medo da solidão. Para Ana, Murilo lhe despertava uma volúpia, uma sede, que ela sabia desregrada e que a conduziria a um descompasso, a um ponto de ebulição. Enquanto vejo Ana em sua cozinha, penso em Kit: para ambas, amar era renunciar ao conforto.

Ele

Era antes de dormir que ele percebia a extensão do seu estado. Há muito tempo não se apaixonava. Há muito tempo. Rememorava as poucas mulheres que chegaram perto. Porque não as deixara ir adiante? Não sabia responder. Faltava algo do feminino que lhe era indizível. Não sabia definir. E, então, porque ela? Algo naquela mulher acolhera seus desejos e seus pensamentos.
Tinha ganas de chamá-la. “Para quê?”, pensava. Não havia sentido naquilo. Fora tudo tão rápido. Mas tudo tão intenso. Uma noite. Um jantar. Ele, Pedro, seu amigo de infância, e Ana, a esposa deste. Começou por uma leve sensação de que ela o observara de um modo diferente. Mais ouvira do que falara aquela noite, afogado diante da expansão de Pedro e suas histórias e seus trabalhos e suas vantagens e suas idéias. Tanto ele quanto Ana apenas ouviram Pedro falar de si. Sempre de si. E foi aí que, num segundo, a mirara. E foi ali, quando ela lhe devolveu o olhar, que se perdeu num emaranhado de desejos e perguntas. Ana e seus olhos. Ana e seu corpo. Ana, a mulher do seu amigo. Amigo? Sim, ele e Pedro se conheceram na infância, cresceram juntos numa pequena cidade do interior de São Paulo. Lembrou de como se separaram em um momento: cada seguiu para lugares diferentes, rumos distintos. Ele, jornalista; Pedro, um administrador. Depois de anos, retomaram os contatos. Pedro lhe escrevera num dos primeiros e-mails: “casei. Ela se chama Ana. É linda, você precisa ver. Você vai gostar dela.”. E então, numa visita que eles fizeram à cidade, o chamaram para jantar. E foi naquela noite que ele revira Pedro, depois de anos. E foi naquela noite que ele conhecera Ana. E foi naquela noite que Ana deparou-se com seu casamento infeliz.

Ela

“Quando um teto passa a ser uma prisão?”. Não dormiu enquanto pensava nisto. Vez ou outra, virava-se e ficava mirando Pedro em seu sono infantil. Um sono sem dúvidas.

Ela

Era na área de serviço que hora ou outra, ela, com um cigarro entre os dedos, chorava em silêncio. Odiava pensar que chorara pela primeira vez na noite da sua lua-de-mel, enquanto Pedro dormia.

Ele

Há momentos em que a única coisa em que pensa é que ela tem os cabelos vermelhos.

Os dois

Ela adorava os encontros que tinham em uma livraria do centro, quando ele lia em voz alta passagens de Ítalo Calvino ou Carson McCullers. Quando recitava trechos de Drummond. Para ela eram momentos únicos: ele lendo, lhe revelando coisas belas tristes intensas. Isto a seduzia: a curiosidade dele. Vez em quando ele aparecia com um escritor do qual ela jamais ouvira falar e isto provocava nela uma grande admiração e atiçava o seu desejo. A curiosidade era uma virtude para o masculino. Ele se encantava por Ana em sua leveza: tudo parecia mais fácil próximo a ela. E ela falava, falava, falava, contava casos, ria, chorava. Certa vez, numa tarde de maio, fim de tarde, quando o céu já estava num tom escuro de tão azul, os dois entraram em um sebo e ali ficaram folheando revistas e livros velhos. De súbito, ela tomou uma revista Cruzeiro, dos anos 50, e observando as fotos dos homens percebeu que ele tinha uma beleza antiga, como um Gregory Peck, um Marlon Brando. Ficou mirando-o durante um bom tempo, sem que ele desse conta disso. E naquele momento, vendo-o absorto com algum livro, completamente entregue, porém sem falar de si (ele raramente falava dele mesmo), ela percebeu que estava vivendo os momentos mais intensos da sua vida.

Os dois

Um domingo à tarde, quando Pedro estava viajando, os dois se pegaram andando por uma parte mais velha do centro. “Vê, Ana. Aqui o tempo fez seu efeito. Ele sempre faz. Não temos como fugir. Uma hora, eu, você, nós, Pedro, tudo isto será passado”. Ana ouviu em silêncio. Nunca gostara muito dessas frases de Murilo, solta assim, de repente. Algumas a assustavam, porque tratavam sempre disto: do fim. E ela, Ana, nunca gostara de pensar no fim de nada. Fins a deprimiam. Neste ponto, Murilo lhe era totalmente oposto: pensar no efeito do tempo, para ele, era tornar tudo mais belo, simplesmente porque, sabendo que nada é para sempre, o presente se torna infinito.

Interlúdio

Em um dos verbetes que mais me seduzem nos “Fragmentos do Discurso Amoroso” (“Espera”), Barthes conta a história de um mandarim chinês que, apaixonado, escuta da sua amada: “serei tua se passares cem noites sentado num banquinho do meu jardim, à minha espera”. Ele sentou-se e esperou 99 noites e, antes de findar a última, simplesmente levantou-se e foi embora. É porque sabemos o fim da prova que essas 99 noites adquirem uma dimensão que chega a nos afogar. Paul Bowles, novamente: é como correr atrás de um ônibus parado em um ponto, do qual sabemos que o próximo só virá dali há horas, e que sai um segundo antes de chegarmos. Exatamente porque vamos esperar horas, e sabemos disto, o presente, no primeiro segundo após a saída do ônibus, assume uma dimensão infinita. Tamina, personagem de Milan Kundera em dois dos contos de “O Livro do Riso e do Esquecimento” percebe exatamente este ponto: esperando, atrás de um balcão, a passagem do tempo, mas pensando o tempo todo no fim dessa espera, ela percebe a infinitude do presente. Para ela, o tempo nunca passa, lhe dando a sensação de estar parada. E isto, em um determinado momento, a enfastia.
Há, porém, uma diferença entre o mandarim e Tamina. O primeiro, apaixonado, faz da sua espera a prova de um amor que não reconhece o objeto. Pouco lhe importa a sua amada: ele, na verdade, deseja o desejo, ama o amor. Tamina é o oposto: tudo está no objeto (o marido já falecido). Sua espera não tem um fim em si mesma. Ela espera alguém que confunde consigo própria. Ela não ama o amor, não deseja o desejo. Pelo contrário: ela espera livrar-se do amor e e é por isso que o presente e seu infinito a angustiam. Murilo ama o amor, deseja o desejo, vê beleza não no objeto, mas na relação. De tudo ficará apenas a memória: e isto, para ele, basta, e é belo
.

Os dois

“O que você está fazendo?”. “Lendo”. “O quê?”. “Dois contos de Borges”. “...”. “...”. “Borges me entendia”. “...”. “...”. “Eu gosto. Onde está Pedro?”. “No banho”. “Vocês treparam?”. “Sim”. “Fico pensando como você consegue”. “Eu penso em outras coisas, outras pessoas”. “Outras pessoas... pensa em mim?”. “Não”. “...”. “...”. “Outras pessoas... Podemos nos ver amanhã?”. “Sim, acho. Pedro chegará tarde em casa e terei o fim da tarde livre”. “...”. “Eu te ligo”. “Sinto sua falta”. “Eu também. Eu te ligo amanhã”. “Sinto sua falta”. “Tchau”.

Ela

Durante o sexo com Pedro, ela pensava em uma tarde da adolescência onde vira um homem no metrô com uma ereção enquanto encostava em uma passageira. Ela lembra de não poder desviar os olhos do volume da calça, até que reparou que o homem a mirava, enquanto ficava ali, encostado a uma passageira que mal percebia o que se passava. Ao encarar o homem, ela desejou ter nojo, ódio. Mas não. Pelo contrário, sentiu algo como um arrepio em suas costas que, lhe parecia, vinha dos quadris. Ficou confusa e desconcertada. E durante alguns segundo, mirou o homem mas não o viu, assustada com o que estava sentido. Quando retomou, segundos depois, o olhar, viu apenas o sorrisinho de um homem que tinha percebido mais do que devia. Nesse instante sentiu ódio: por ela, não pela passageira.


Os dois

Quando terminaram, sabiam que seria a última vez. Ficaram ali, na cama, mirando o teto daquele quarto impessoal, de um hotel descoberto ao acaso numa das primeiras incursões. Ela ouvia a respiração dele, o ritmo monótono e como que fatigado. Olhou para os pés. Firmes, que sempre a fascinaram. “Pés de um anjo”, como sempre lhe dizia, rememorando as infinitas tardes humoradas e repletas de ritmo que tiveram. Ficou muito tempo olhando os pés, esforçando-se para não olhá-lo nos olhos. Ela sabia que ele a mirava. Esperava seus olhos. Por um segundo, odiou-o por isto, como se ele maculasse com uma birra infantil uma tarde que ela gravaria na memória para sempre. Era a última vez. Ela já havia lhe dito e ele assentiu num silêncio que, de início, a havia assustado e incomodado, mas que depois lhe deu a impressão de tratar de mais um, entre tantos, gestos da sua entrega.

Não poderiam continuar. Ela resolvera tentar ainda com Pedro, um novo arremedo em direção a algo que ela considerava mais confortável.

Ele e ela

Àquela hora, a praça estava vazia, com alguns transeuntes, míseros bêbados e algumas crianças. Como sempre, os pombos. Os dois, que até então caminhavam em silêncio, pararam. Era hora da despedida. Miraram-se demoradamente, porém nada foi dito. Ele perscrutou cada milímetro do rosto dela, cada cavidade, os olhos, a boca, sobrancelhas, cada parte que ele tantas vezes mirara pela manhã, ao acordar. Por um instante observou os cílios e pensou no tanto que eles lhe chamavam a atenção, pois davam aos olhos uma beleza ímpar.
Ele quis dizer uma palavra. Ela tapou sua boca levemente:
- Não – disse com a voz embargada.
Ela tomou sua mão e, por alguns segundos, a segurou firmemente. Pela última vez.
De súbito, virou-se e partiu. Sem olhar para trás. Foi a pé para casa e mal reparou na cidade, que tantas vezes os dois percorreram durante as tardes. E quanto mais se aproximava de sua casa, maior era o seu esforço em transformar aquilo em passado. Sim, agora tudo era a invenção de um passado feito de nostalgia e remorso. “Toda história é remorso”, lembrou dos versos de um poeta.

Ela

Estava cansada de tanto caminhar e tentou, ao máximo, prorrogar a chegada em casa, que ela sabia que seria dolorosa. Sabia que Pedro não estaria, mas mesmo assim seria dolorosa. A casa. Abriu a porta e observou a escuridão da sala, que por um instante ela quis que perdurasse para sempre. Seguiu direto para a cozinha, pois lá era o seu refúgio. Ao entrar no aposento, enterneceu-se por um segundo com o cheiro e a textura tão familiar de tudo: da escuridão iluminada pela janela da área de serviço, do ar, o ambiente. Estava a salvo e agora o trabalho seria transformar tudo em um sonho. Murilo foi apenas um sonho. Murilo foi apenas. Murilo foi. Fechou os olhos e se entregou à luz negra da cozinha. “Toda história é remorso”. Ao acender a luz, deparou-se com a chaleira e um resto de água que fervera pela manhã.

Instantâneos

Os dois não se falam, mas vão todos os dias à mesma padaria que iam quando estavam juntos. Ele não sabe, mas ela sempre chega logo depois dele, senta no mesmo lugar em que ele estivera há pouco, e pede para que não recolham a xícara usada que ainda está sobre a mesa. Às vezes, ela imagina as conversas que teriam.

Mazinho é estudante de ciências sociais e acredita na causa dos oprimidos. É vegetariano, milita na PETA, vota na esquerda, odeia os EUA e a TV Globo, assina Caros Amigos e lê Noam Chomsky. Desesperado, resolveu fazer terapia para se livrar do vício de buscar na internet sites de pornografia infantil.

Helena adora brincar com os homens. Por isso, troca de namorado a cada dois meses. Segundo ela, depois de dois meses de uso qualquer homem fica com um gosto enjoativo. “Algo como uma Fanta Uva quente, sem gás”, diz.

Todas as amigas dizem à Laís que agora sua vida está bem melhor. Aos 41 anos, está bem no trabalho, bonita, alto-astral e tem um caso com um designer bom de cama, carinhoso e seis anos mais novo. Porém, nenhuma amiga sabe que, desde que se separou, Laís acorda sempre no meio da noite e não consegue pegar mais no sono. Sente falta do ex-marido. Era um canalha, é verdade, mas a escutava como ninguém.

Euclides é engenheiro e odeia seu nome. Nas festas se apresenta como Eduardo. Acha que este nome lhe trará mais sorte com as mulheres. Euclides tem 38 anos e nunca namorou ninguém. Seu maior medo é ficar sozinho para resto da vida.

Flávia descobriu aos 30 anos que todas as suas amigas já haviam tido uma experiência homo. Resolveu não ficar pra trás e, numa festa, após seis taças de vinho, ficou com Geovana, 25, uma dentista estrábica. Flávia gostou da experiência, mas achou melhor ainda perceber que Geovana não era tão boa de cama e que demorava mais tempo para gozar do que ela.

domingo, março 09, 2008

Pra quê rimar amor e dor?

O amor começa tarde
Drummond

Pois o amor tem disto: feito de caminhos que se bifurcam, de jardins suspensos que se tornam cada vez mais misteriosos à medida que nele adentramos. Tem disto o amor: perguntas que jamais que serão respondidas e melodias intermináveis feitos de riso e lágrima. Ou ainda: é feito de encontros fortuitos que, acaso não se olhe com a devida atenção, parecem meros acasos. Mas jamais o são.

Meu bem, não se iluda. Nada é fortuito neste dia de sol.

Porém há uma beleza superior nisto: capaz de conformar danças, modular gestos, o amor nunca aparece por inteiro. Está ali, espreitando. Tem disso o amor: mesmo que ele não se consuma, ele está ali, possível e inexplicável. Indecifrável como uma palavra não pronunciada, mas que se traduz em doces risadas e um pote de sorvete.

Pode ser que amor não apareça e nos deixe esperando. Mas, convenhamos, um pote de sorvete... sempre cai bem, não?

Crônica

Por um instante resolveu tirar seu coração do congelador.
Tirou.
Pôs sobre a mesa e ficou olhando, para lembrar como se usa.
O coração deu umas batidinhas e parou de novo.
Perdeu o hábito, pobre músculo.

Por segurança, o congelou mais uma vez. Uma hora ele verá o que fará com aquilo.
Talvez sirva para alguma coisa.

sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Mensagem numa garrafa

este é outro texto que já foi postado aqui em outras épocas e foi retirado por uns tempos, para uma aventura externa.

Quando abrires o livro daquele poeta mineiro cujas palavras lemos como navegantes liam antigos portulanos, como se elas fossem rotas possíveis em um mar de desenganos e perdas, e leres “palavras duras ditas em voz mansa te golpearam/ nunca, nunca cicatrizam/ mas e o humour?”, talvez chores no silêncio do teu quarto, contemplando a vista deste bairro de vida lenta tal qual cidade no interior, e talvez se entregue a uma solidão de tipo diferente das que viveras até hoje, uma solidão feita não da ausência de matéria ou carne, mas sim de humana compreensão diante do que consideras natural em ti. Ou talvez apenas se enrede num fio interminável de considerações e ponderações do que fizeras até então, remoendo cada lágrima dita, cada palavra vertida, cada silêncio pronunciado, cada esporro contido, lembrando com vertigem dos dias de um outono distante da tua vida onde o gozo se tornara fácil e o medo se dissipara em ondas de esquecimento.
Porém voltando os olhos pela superfície opaca do papel, na qual transparecem estados d’alma de alguém que nunca vimos, lerá também “vamos não chore, a mocidade está perdida, a infância está perdida, mas a vida não se perdeu”. Ao leres esta litania de um mineiro triste, orgulhoso, de ferro, talvez sintas um misto de desespero e angústia, tamanhos que não caberiam nas linhas de uma carta, no texto de um e-mail ou numa mera conversa com os poucos sobreviventes que te cercam e aos quais não precisa oferecer uma face pública feita de afetos e risos forçados. Uma angústia muda, tal qual lâmina que trespassa qualquer esperança que tenhas no que virá, qualquer remorso que sintas pelo que fora, qualquer apego que tenhas pelo que aí está. Ou talvez cresça em ti uma raiva inaudita pela tentativa deste bardo em te convencer que nem tudo está perdido e que podes ainda contar com um simples, um mísero poema impresso numa folha de papel. A este sentimento de raiva, lembre-se: e o humor?
E se ao poema voltas: “O primeiro amor passou, o segundo amor passou, o terceiro amor passou”. Sim, disto não podes fugir e desabas no solo frágil da tua existência e admites que, de todos os amores findos, restou apenas a memória de breves momentos condensados na lembrança de um beijo, de uma música, de um cheiro, de um tapa, de uma traição ou de um simples momento de intimidade de uma manhã de domingo. Amores pretéritos: àquilo que concedeste o benefício da eternidade sobreveio uma imprecisa sensação do tempo, medo de que sejas tu o erro, o engano, ou o temor de que paire sobre ti o vaticínio da solidão.
Neste instante talvez lhe venha a idéia da longa viagem, a sensação de que tudo se revelará um sonho quando caminhares pelo Leblon, ou pela Paulista, ou pela Avenida de Mayo ou por uma outra paisagem que não a tua. Ledo engano: descobres que alguém se adiantou aos teus pensamentos. “Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra”. A viagem seria apenas um desvio momentâneo, um breve interromper da dor, suspensa sabe-se lá por quanto tempo. Então, se não vale a viagem, tudo está perdido?
Não, te responde a inscrição do poeta. “Tens um cão!”. Risível comentário diante dos teus pensamentos, que talvez soe como um gracejo de mau gosto. Porém, talvez só um cão, um gato, um peixe, possa lhe dar o silêncio que procuras e a presença que exiges. O que procuras? Tu também não sabes e nem um cão te perguntaria. A ele basta apenas o carinho das suas mãos. E se por um acaso a idéia do cão continuar lhe ofendendo, lembre-se novamente da pergunta anterior: e o humor?
É possível também que a esta altura do poema você tenha se esquecido de que estas palavras são de um Escorpião, incapaz de oferecer um ombro, mas pronto a compartilhar contigo da dor que talvez sintas. Um Escorpião que jamais lhe ofereceria seu corpo (“tão infenso à efusão lírica”), mas que choraria a morte de um simples leiteiro ou se comoveria pelo sumiço de uma moça sem graça chamada Luísa Porto. Não convém, portanto, recusar estas palavras, dádivas, mesmo que elas provenham de alguém que se define como sendo alheio ao que “na vida, é porosidade e comunicação”. Talvez as palavras sejam as únicas dádivas possíveis. Talvez.
E se você ainda duvida da compaixão que um cidadão de uma cidade perdida no interior de Minas é capaz de sentir, permita-se seguir adiante no consolo que ele te dirige. Verás que no fim de tudo, após os protestos tímidos, após o amigo que partiu, após os amores que passaram, após descobrir que nada tens e que talvez o melhor seja realmente “precipitar-te, de vez, nas águas” – hipótese que, com certeza, passou pela tua cabeça um dia – verás que, após tudo isto, o melhor a fazer é simplesmente dormir: “Estás nu, na areia, no vento. Dorme”. Sim, dormir embalado pelas palavras que, senão lhe tocam o corpo, talvez sejam a única via para o teu coração.
Vamos, não chores.