domingo, agosto 30, 2009

Mulheres segundo o Evangelho de São Jorge (versão apócrifa)

1. Que nega é essa

Os olhos negros de azeviche miram o espelho partido de um banheiro público em pleno sábado de carnaval. Jovem, não mais de 22 anos, usa batom de cor forte, mas a maquiagem é suave. A pele é quase escura: mel. As mãos, finas de dedos compridos e unhas vermelhas, remexem a pequena bolsa de poucos recursos, à procura de um cigarro perdido entre chaves, batom e pequenos papéis. Levanta novamente os olhos e se mira no espelho: a boca, o queixo fino, o pescoço, o colo. Acha-se dona do mundo. “Trouxa”, pensa. “Casar? De vestido branco?”. Ri da própria dissimulação, mas acha que mesmo assim vale à pena faturar alguma coisa em cima daquele otário.

2. Cadê Tereza?

Enquanto o Tavares, funcionário de uma papelaria e torcedor do Madureira, a procura desesperadamente, Tereza pode ser vista num samba próximo à rodoviária (e não no morro, conforme versões posteriores ao crime), completamente bêbada e entregue aos braços de Pedrão (este, obviamente, um torcedor do Flamengo). Tereza não gosta de futebol, mas a esta altura do campeonato prefere os flamenguistas. Mal sabe ela que, mais tarde, no cemitério São João Batista, amigos, desinformados quanto à razão da sua morte, mas condoídos pelo suicídio de Tavares, enterrarão os dois sob uma bandeira do Madureira. E ainda cantarão o hino.

3. Ive Brussel

Ive adorava passar as férias no Brasil. Nas últimas, há cerca de um ano e meio, foi ao Rio e a Salvador. Na capital carioca, encantou-se com um músico, meio desconfiado e sem jeito (quase calado), mas cheio de swing, chamado Jorge Duílio, que, encantado pela moça, lhe compôs uma canção. Apesar disto, Jorge Duílio foi rapidamente esquecido quando Ive desembarcou em Salvador e conheceu, num papo-cabeça, um estudante de filosofia cabeludo – que também cantava, e era até bonitinho com sua voz de cantor – chamado Emanuel Teles, que igualmente lhe compôs outra canção. No entanto, o baiano logo a cansou e ela voltou para a Bélgica achando os homens brasileiros, apesar das belas canções, um pouco grudentos e um tanto quanto melosos. Resolveu ser prática em matéria de homens e atualmente namora um boxeador (peso pena) ucraniano que ela conheceu num bar em Bruxelas. À propósito: a única coisa de música brasileira que o namorado de Ive conhece é Sepultura.

4. Cinco minutos

Eu não podia esperar mais. Não, eu não podia. Se ele falasse um pouco mais, eu não poderia voltar pra casa. Nunca mais. Eu gosto dele, mas não posso largar tudo assim. E os meus filhos? E o Zeca? O Zeca é tão bom pra mim e não merece isto. 5 minutos: foi o que o outro pediu para me dizer tudo. 5 minutos não é nada, eu sei. Mas eu não podia, eu não posso. Vi que ele ficou mal. Eu vi e sei o que estou perdendo. Eu o amo, mas é melhor assim. É. É melhor assim. O Zeca e as crianças não conseguiriam ficar 5 minutos longe de mim.

5. Bebete vão embora

Quando Bebete acordou eram mais de onze horas. Seus olhos pesavam e sua cabeça parecia uma gangorra. Acordou com os berros do seu filho, que ainda não havia mamado. Gritou para a irmã ordenando que desse um jeito naquela criatura estúpida. O samba da noite anterior estava muito bom e ela precisava dormir. “É tão bom ser casada com um homem que trabalha”, pensou enquanto se virava para se agarrar de novo ao sono.

6. Meus filhos, meu tesouro

Quando criança, Anabela era chamada de gorda, inclusive pelo pai. Uma tremenda injustiça, já que ela era magra. Cresceu traumatizada pelo estigma e resolveu se vingar da vida: montou um consultório que atende precariamente, pelo SUS, mulheres com problemas de obesidade. Duas morreram devido a lipoaspirações mal feitas e Anabela teve que se esconder por uns tempos. Foragida, não pôde realizar seu projeto de vida: ser uma dona de casa atuante, de preferência casada com um milionário.

7. Xica da Silva

No morro do Tijuco todos sabiam: ninguém podia sequer olhar para a Xica, mulher do Joãozinho Fernandes, maior traficante da cidade. Xica adorava jóias e tinha uma especial predileção por diamantes, o que Joãozinho, ávido pelos deleites proporcionados pela moça, satisfazia regularmente. Todos sabiam, contudo, e ninguém dizia um isto, que Xica tinha seus casos: aliás, hora ou outra, ela descia o morro caçando suas presas. E ai deles se fugissem. Definitivamente, contrariar Xica não era um bom negócio.

Um comentário:

João Castelo Branco disse...

No final a bandeira do Madureira ainda salvou a história da Teresa com alguma dignidade.