domingo, junho 21, 2009

Pequena carta para um velho amigo

Caro Erik,

há muito tempo penso em lhe escrever. Mas hoje, particularmente hoje, numa noite fria de um céu sem nuvens, com todas as estrelas ao alcance das mãos (e, devo admitir, com este vinho...), você me pareceu tão próximo, tão presente que, tenho certeza, não vai se importar de eu lhe escrever algumas poucas palavras. Enquanto te escrevo, Erik, escuto sua música. Uma das Gnossiennes. A de número um. Esta música me diz tanto, você nem imagina o quanto. Adoro te imaginar tocando isto em alguma noite quente em Paris, com folhas vermelhas e azuis e verdes, tais aqueles quadros de Monet. Esta música me traduz tanta coisa que eu nem sei escrever. Imagino uma brisa, uma tarde de verão, um fim de tarde, um daqueles retratos parisienses, um autocromo dos Lumiére. Isto: imagino um dia com aquelas cores. Dia desses fui a um museu ver estes autocromos e, te confesso, entre envergonhado e solitário, chorei. Discretamente, mas chorei. Pensei em você na hora em que entrei na galeria. Tua música me veio como um fardo. Em cada olhar, em cada gesto daquelas fotos, havia você e seu piano. Eu estava acompanhado de uma pessoa a quem prezo muito. E tudo pareceu perfeito: os Lumiere, a minha companhia, a tua música. Por isso, só por isso, emocionei-me. Passei dias pensando em te escrever só para contar isto. Bobo, não? Talvez. Mas não ria de mim. Você tem o dom de me desnudar. Tua música faz isto: me desnuda, desvela. Fico sem proteção alguma. Não é o único que faz isto. Mas o faz de um jeito singular, como nenhum outro.
E eu, desprotegido, te confesso, Erik, aqui estou solitário numa noite de sábado. Meus amigos estão longe e meu coração... meu coração nada faz senão bater. Serei um insensível? Serei um monstro? Não. Tenho certeza que não. Tua música me diz que não. Cada vez que te escuto, sobretudo aquelas em modo sentimental, sou tomado de um furor, um sentimento absurdamente vivo. Um poeta escreveu certa vez: "esta lua, este conhaque, botam a gente comovido como o diabo". É isto: sua música me deixa tão comovido que me garante que estou vivo. Eu me refujo na sua música: cesso todas as relações, todas as palavras. Ali, somos apenas eu e os sons. Mais nada. Há tempos que eu te uso para isto. Para sentir-me vivo.
Gosto das tuas músicas tristes. São noturnas como agora são duas da manhã e o vinho é apenas um passado remoto. Mas eu sei que tua melancolia revela também um senso de humor absurdo. Me reconheço nisto. Você nem imagina o quanto. Eu rio, Erik. Rio de mim o tempo todo. Minha sanidade depende disto. Houve um tempo em que achei isto ruim. Hoje preservo isto como meu maior dom. Rir de si. Eu sei que você ria de você também. E, por isso, entendo a melancolia das tuas músicas. Uma melancolia feita de fins de tarde impressionistas. Uma melancolia feita de pedaços de memória, pequenos gestos e tardes de sábado.
Moro numa cidade pequena, Erik. Há dias onde o silêncio da minha rua me surpreende. Ouço apenas o vento. E penso na tua música. Ouço o azul do céu. Um céu azul, sempre, sempre sem nuvens que, no inverno, tende ao escuro e é lindo. O vento é azul na minha cidade. É puro impressionismo. Ao lado da minha casa há uma construção, um prédio a ser levantado por uma família. Pois dias desses, resolvi fazer um passeio num domingo à tarde e vi a família toda reunida num almoço em um prédio em construção. Em meio a argamassas, tijolos e madeiras, havia uma mesa, com pano quadriculado, um perú bem no centro, e algazarra típica de um família de domingo: o pai, a mãe, taciturnos, os filhos bagunceiros, o tio debochado. Pensei, de novo, na tua música. Aquilo era tão íntimo, como os autocromos dos Lumiere. Senti-me invasivo e invejoso. Inveja daquela intimidade, daquela simplicidade familiar da qual me lembro em fios de memória que ainda resistem, mas que se encontram cada vez mais esgarçados. Fiquei tão emocionado! Uma simples família de alemães no interior de um estado do Brasil. Tão longe da sua música, mas tão perto!
E hoje à noite, é isto. O silêncio da minha casa. Uma certa melancolia feita de sábados. À minha direita, um livro de um conterrâneo seu, chamado Michel Leiris. Dele tomo uma epígrafe que talvez lhe diga algo:
"Eu sozinho. Sinto meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que vi; ouso acreditar não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho mais, ao menos sou diferente..."
Isto é Rousseau e eu tenho certeza que você não discordaria. Tua música, aos meus ouvidos, soa como esta frase: "Sinto meu coração e conheço os homens". Sempre que o verbo sentir me bate à porta, tua música me ajuda a abri-la.
Do seu,
João Pedro de Andrade

8 comentários:

Anônimo disse...

EU TE ODEIO, ALLAN!

..::RodrigO::.. disse...

Concordo quando dizes que o Vento' de tua cidade é Azul.
De resto, uma boa semana.

Anônimo disse...

Acabei de reler (pela enésima vez) ouvindo a música. "Discretamente, mas chorei". Às vezes eu fico pensando que se Deus existe ele deve ser músico. Na maioria das vezes eu tenho medo de ficar louca por pensar demais.

Anônimo disse...

Tenho medo do amor à melancolia. Sentir-se só nem sempre é se sentir triste. Algumas vezes é, e isso é necessário, mas prefiro não cultivar minhas impossibilidades... se a luz está muito longe, pode ser porque nos colocamos fundo demais no poço.

Anônimo disse...

De qualquer maneira, seu texto é lindo.

Anônimo disse...

Engraçado...sonhei que estava me afogando...

Fernanda Boechat disse...

ainda acho um tom de deboche, às vezes. mas é lindo, muitas vezes.

Laize Guazina disse...

Satie é tudo de bom!