segunda-feira, março 16, 2009

Substância

Por que éramos os dois olhando a mesma janela. Eu e ela buscávamo-nos assim, por um vidro sem cortes, completamente transparente ao tempo. E mirávamos a janela de uma tarde de janeiro apagada pelo tempo, com a esperança de muitos janeiros e marços e carnavais. Por que éramos os dois tateando em vão as perguntas envoltas no ar do impossível, daquilo que não pode ser dito sem o preço da ofensa. Tateávamos às sombras de uma infinita ternura, por vezes azeda, tal um vinagre negro a se impor sobre a mesa durante um almoço de domingo. Porém, do azedume partíamos para um silêncio que nos constrangia e salvava-nos antes do fim da tarde. Salvos, porém culpados. Por que éramos os dois desesperados pelo corpo, corpo, corpo, visto sempre de lado, nunca de frente, como um caroço que se evita, mas que se busca até o fim de uma fruta suculenta. O sumo não tinha gosto, mas dor. Por que éramos os dois, somente os dois, mais nada. Não havia fiadores: por isso tudo era espera e resignação. Esperávamos o dia em que confrontados, perguntaríamos: por que somos os dois? E nesse dia vimos que a janela tinha ranhuras profundas. Sentamos e miramos de mãos dadas a chuva que caia numa quarta-feira feita de papéis brancos e verdes e brancos e rubros. Nada dissemos, por que sabíamos que éramos os dois, conjugados pela última vez.

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