quarta-feira, agosto 27, 2008

Réquiem

De Lúcia lembro, sobretudo, os silêncios. Eles me acariciavam, envolviam-me. Ninar – meninar, me ninavam. Davam-me uma paz, um sentimento esquisito de amparo. Os silêncios de Lúcia desafiavam o tempo da minha solidão. Neles eu me embrenhava feito um garrote desgarrado, um noviço. Lúcia não sabia, mas seus silêncios eram a minha razão de ser. Como eu gostava de estar ao seu lado naqueles momentos de domingoazulcéu e nós, nós, nós, nós dois em silêncio andando horas pelo centro daquela cidade vazia. Éramos nós dois tal feito um nó górdio a que nada no mundo era capaz de separar. Éramos nós dois tal feito dois infantes na inocência de anjos de um quadro renascentista. Éramos nós dois e só: somente a cidade de testemunha. Suas esquinas provam. Seus prédios confirmam. O asfalto? Nosso leito. Postes? Abajures. Pedestres e carros? Estes não existiam. Percorríamos ruas, olhávamos arquiteturas, sentávamos em praças, espiávamos janelas, víamos bêbados e pederastas e nos encantávamos com a cidade. E nosso encantamento se traduzia para mim no silêncio de Lúcia. Pois eu sabia que naqueles momentos de silêncio, Lúcia estava como nunca mergulhada em nós.

Mas de Lúcia lembro também dos olhos. Acolhedores. Curiosos. Intensos de não mais se esquecer. Impossível olvidar os olhos de Lúcia. Diante deles parecia que nada era indiferente e tudo era distante ao mesmo tempo. Olhos de se devorar. Olhos de se medir. Lembro de quando eu, ainda absorto em uma vã tentativa de tocar a música do mundo, sentava em um canto e dedilhava uma velha canção dos Beatles – que ironicamente falava do que ficou no passado – lembro-me de como Lúcia somente me mirava, como se ela soubesse de uma grande verdade sobre mim (e de fato, ela sabia). Aqueles olhos me desafiavam, me excitavam. Aqueles olhos buscavam o livro do mundo para nele inscrever novas palavras, riscar no céu os versos mais bonitos. Lucy in Sky with Diamonds.

De Lúcia guardo a lembrança de tardes infindas de inverno onde, ao som de copos de chá, revolvíamos a prosa do mundo. Nada existe que não se fale nesta mesa de bar. Lúcia dizia rimmel e marxismos; sabia de magias das terras sudanesas e os ascendentes todos; Bach e Magritte. E lá pelas tantas eu desistia de uma interlocução imensamente prazerosa, porém inútil, e me colocava onde jamais saíra: na posição de noviço. Lúcia me ensinou quase tudo que eu sei.

Ela era a minha verdade. O norte. Eu, à época, um menino, não desconfiava do tamanho do seu lugar na minha vida, tampouco da imensidão do espaço que ocupara em meu coração. E assim como os dias se sucedem e ao outono segue-se os dias frios, Lúcia e eu nos perdemos, nos deixamos ficar em algum lugar do qual, anos depois, só posso lembrar contritamente: e choro, menino, choro.

Eu não sabia, mas minha vida se resumiu a Lúcia. Hoje, aqueles anos só existem na minha memória: não há mais cidade, dias frios, silêncios, palavras. Há apenas um homem velho que se recusa a esquecer, pois sabe que viveu um grande amor. Vidamor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Pare de se achar velho Allan, as pessoas não ficam velhas ficam sábias.

Carol Damião disse...

Odeio todas essas Lúcias que resumem as vidas.