terça-feira, outubro 23, 2007

Fragmentos Mínimos de um Sábado

Assim como o post anterior, este texto já foi postado em outro momento e foi retirado para uma "aventura externa". Agora retorna. Ele foi escrito com um poema de Vinícius na cabeça.


Hoje chove. Apenas. O dia está cinza e um violoncelo toca uma melodia de Bach. Levanto-me e vou à janela. Um casal passa correndo entre árvores, marquises e poças. Eles param. Ela leva sua mão ao rosto dele. Trocam algumas palavras. Brigam. Ofendem-se embaixo da chuva e ao som de Bach. Meus olhos seguem cada gesto do casal, cada palavra, cada sinal. De repente, um deles se vai e o outro fica. Imóvel, suspenso, vendo apenas alguém que ama se afastar, se afastar, se afastar. Perdem-se de vista. A moça senta no meio-fio e chora copiosamente.
Volto os meus olhos para o quarto e silencio Bach. Certas lágrimas não admitem outros sentidos.

Agora o velório se arrasta e poucos conhecidos chegam para prestar sua homenagem. A viúva mira o caixão e sente um desejo enorme de que tudo termine rápido. Não suporta aquelas pessoas, os filhos, aquelas roupas, aquela compaixão. Lembra, por um segundo, de um outro velório, há anos, em que fora com o marido e resolveram escapulir para uma praia próxima, onde se empanturraram de sol, camarão e caipirinhas. Beberam em honra do defunto. “Um imbecil”, segundo os dois.

Quando Helenice tomou o último tapa, a única coisa em que pensava era estar longe dali. E, de alguma forma, estava mesmo. Jorge não sabia, mas se prestasse atenção nos olhos da esposa, saberia a falta que ela sentia do pai, que também a espancara várias vezes na vida. Porém, o pai jamais se desculpara.

No boteco do Japa é possível encontrar os bêbados do Juvevê, o pastel mais engordurado, o marido enfastiado, o torcedor sem esperança, o estudante vagabundo, a garota que tem dois namorados, o alcoólatra de balcão, o casal mais íntimo. É também o único lugar de Curitiba onde o guardanapo tem a inscrição “inseminação artificial”. No boteco do Arlindo, é possível encontrar o estudante de sociologia, o fã do Art Brut, o jornalista pé-rapado, a garota multi-piercing, o hippie inveterado. É também o único lugar de Curitiba onde há quadros de Garrincha por todo lado. Mesmo assim muitos fregueses carregam um livrinho de Marx e acham o futebol um dos “ópios do povo”. No bar do Dante, a barriga é obrigatória, e no Santa Rita de Cássia mulher só entra se estiver impressa em pôster de cerveja.

Desdete não se conforma que a patroa lhe dê trabalho aos sábados. Assim, tem que acordar cedo, sair daquele fim de mundo, pegar dois ônibus até chegar à casa onde trabalha. Por isso mesmo, não se cansa de dar uns cascudos na filha da patroa logo que esta vai às compras. Adora descontar sua raiva naquela criança entojada.

Quando os dois terminaram, exaustos, ficaram em silêncio. O quarto era apenas a luz fraca do fim de tarde e os barulhos dos outros casais em quartos vizinhos. Não sabiam há quanto tempo estavam ali e tampouco se lembravam de que eram tio e sobrinha.

Nesse momento, em Curitiba, há dois estupros em andamento, há alguns casais que se amam, há vários bares cheios, há uma garoa que insiste, há um frio que resiste, há alguém escutando Troilo, há um leitor e um Vinícius, há uma gestante que espera, há várias coisas que são belas e outras tantas que nem tanto.

Volto à janela. São seis horas da tarde e a noite se aproxima. Bach volta a ecoar pelo quarto. Penso no que desejava escrever e naquilo que escrevi. Penso no que desejava para o meu sábado e naquilo que ele foi. Sábado, o dia do descanso ou o dia da criação? Não importa: sábado é o dia em que Deus resolveu ser generoso consigo mesmo.

3 comentários:

Unknown disse...

Assim como passa o tempo e suas frações, (sendo elas quantitativas, se quisermos calcular-lo, ou seja ele de existência se ousármos questioná-lo..) penso eu, logo depois de passar meus olhos e meus pensamentos e compartilhar esse cotiano, me pergunto..a que distância estamos um do outro? A que tempo estamos um do outro? Em menos tempo do que você levou para começar a ler essa primeira nova frase algo novo já aconteceu. E o que há de bom e ruim? O que é belo e feio? Com que me importo e com o que não deveria? .....ou seriam essas palavras somente devaneios?Devaneios perdidos como aqueles em um bar ou esquina qualquer de Curitiba.

Simone Iwasso disse...

sábados são mais generosos, malemolentes, fluídos, permissíveis.... em compensação, antecedem os domingos, quase sempre melancólicos!

beijo

Anônimo disse...

"Curiosa coisa é um diário! O que se cala é muito mais importante do que o que se escreve" S. de Beauvoir.