segunda-feira, dezembro 17, 2007

A Procura e o Encontro

Foi. Nunca será de novo. Lembre...

Paul Auster

Há uns vinte anos, pela primeira vez, caiu em minhas mãos “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. Livro publicado em 1956, é considerado o “romance de uma geração”. Conta a história, que a mim sempre pareceu tristíssima, de um escritor e sua descoberta de si mesmo diante do mundo, desde a infância até uma idade onde simplesmente vivemos sem muitas esperanças. Drummond, certa vez, escreveu que desejava “a vida apenas, sem mistificação”. Acho lindo e tocante este verso e sempre me impressionei com ele. Neste blog há várias passagens escritas com este verso em mente. Hoje percebo que “O Encontro Marcado” é exatamente isto: a história de alguém que, aos poucos, percebe a vida apenas, sem mistificação (pois talvez não exista nada mais místico que a própria vida...).
Quando li pela primeira vez, aos doze anos, não percebi muitas e muitas coisas ditas subliminarmente. Mas lembro de sentir medo de que minha vida fosse parecida com a de Eduardo Marciano, o personagem central do romance. Lembro de, na época, ter identificado meus pais no livro: o ambiente familiar descrito por Sabino me soou muito próximo do que era minha família em 1986 (eu, meu pai, minha mãe e minha irmã, então com 3 anos). Um ambiente de carinhos e incompreensões, de encontros e perdas, enfim, uma família. Isto me deu um sentimento ambíguo: por um lado percebi uma certa comunhão com o personagem, por outro senti medo de que a história da minha vida se desenrolasse como a do livro. Por um lado, me senti acompanhado; por outro, só.
Depois disto, li o livro mais três vezes, além de folhear e namorar pedaços ad infinitum. Até hoje, não posso vê-lo em uma livraria (curiosamente, nunca o comprei), sem folheá-lo e reler alguma passagem. Na maioria das vezes, me emociono. Um pouco pelo medo que ele ainda me provoca – outras importantes pessoas que povoaram minha vida estão, para mim, no livro. Um pouco por esta experiência literária única: achar que um livro foi escrito pra você. Esta sensação é indescritível. Sem dúvida nenhuma, foi o livro de Sabino que me fez gostar de literatura.
Vieram outros livros, autores e textos que se tornaram meus (“O Fio da Navalha” de Sommerset Maughan, Drummond, Hemingway, Raduan Nassar, “O Primeiro Homem” de Camus, “Os Amores Difíceis” de Ítalo Calvino, “A Insustentável Leveza do Ser” de Kundera, “Memorial do Convento” de Saramago e, recentemente, “A Invenção da Solidão” de Paul Auster), descobri outros personagens com os quais me identifiquei em diferentes momentos, amei certas mulheres dos livros (Maria Madalena, Blimunda, Sofia, Hannah, Antonieta), odiei outros personagens; porém, nenhum destes livros (com exceção, talvez, de Paul Auster) me disse tantas coisas que levo há tanto tempo.
O medo de viver algo semelhante ainda me toca. Mas isto, hoje, me parece de menos. De alguma forma, todos vivemos a descoberta de Eduardo Marciano: a de que estamos sós, sempre, e de que a vida se esvai no tempo. Porém, esta descoberta não é o fim, pelo contrário: é dela, e somente nela, que se pode ter a real medida do valor do outro, seja ele um marido, uma amante, um amigo, uma filha, um pai. Com Eduardo Marciano, aprendi que a descoberta do outro passa pela invenção da própria solidão. Se consigo aplicar esta lição a minha vida, aí é outra história...

Enquanto escrevo estas linhas, muitas e muitas pessoas me vêm à mente. Gostaria aqui de lembrar de três: o Romeu, o João e o Andrew, meus colegas de Colégio Militar, turma de 1988. Éramos, os quatro, curiosos entre livros e nos reuníamos todos os dias, no “recreio”, na biblioteca do Colégio, cuja bibliotecária, Maria Helena, nos incentivava a leitura. Ficávamos, durante os vinte minutos do intervalo, ali, nos corredores da biblioteca, conversando sobre tudo. Lembro de como me impressionava a cultura literária de João, um ano mais velho do que eu, mas que, aos meus olhos, parecia ter lido tudo. Foi de João que ouvi, pela primeira vez, a história de um livro onde o personagem se transformava numa barata. O autor se chamava Kafka e era “importante”. Alguns dias depois, sem meus colegas por perto, emprestei uma edição que trazia dois contos de Kafka, “O Artista da Fome/A Construção”. Dormi durante a leitura, achei chato e, envergonhado, devolvi sem terminar de ler o primeiro conto sequer. Foi de João que ouvi pela primeira vez a história de Rodrigo Cambará. No Colégio Militar, havia uma edição em sete volumes do “Tempo e o Vento”, do Érico Veríssimo. João, para o meu espanto, já havia lido o épico inteiro. E nos contava histórias e mais histórias dos Cambará. Destas, me lembro perfeitamente do personagem Licurgo, que João sempre citava. Nesta época, em 1986 ou 87, a Rede Globo apresentou uma adaptação do livro de Veríssimo. Rodrigo Cambará, obviamente, era Tarcísio Meira, o galã da época. Ana Terra era Glória Pires e Licurgo era vivido por Armando Bogus. Até hoje, se vejo alguma foto ou imagem deste ator, lembro de meu amigo João. Foi por ele que ouvi pela primeira vez referências a diversos autores: Thomas Mann, Kafka, Borges, Proust, Guimarães Rosa. Curiosamente, não me lembro de ter ouvido algo sobre poesia. Enfim, João foi uma espécie de guia literário para mim e minhas primeiras descobertas se devem a ele. Eu tentava ser como ele, embora, para meu desespero, não conseguisse ler como meu amigo. Para mim, ele realmente lia e eu tentava seguir seus passos.
Lembro de uma vez, sozinho na biblioteca, pegar a “República” de Platão. João havia falado do livro e tinha me deixado curioso. Quando fui emprestar, Maria Helena me olhou e disse:
- “Allan, tem certeza que vai este? É meio pesado pra você. Não é fácil de ler não”.
Eu, todo metido, não me fiz de rogado:
- “Não. Eu posso ler sim”.
Levei o livro e saí da biblioteca morrendo de vergonha pela reprimenda, mas também desafiado a ler o livro todo. Uma vez mais, falhei no meu intento, e li apenas umas vinte páginas. A idéia de ler um daqueles livros importantes por inteiro (líamos obras infanto-juvenis para a aula de português) era, de certa forma, o que me desafiava. Mais do que entender, aproveitar as palavras, era chegar até o fim o que me motivava. Hoje percebo que deixei de ler muita coisa bacana devido a este intuito. Mas também não é justo me julgar vinte anos depois. As linhas podem ter sido tortas, mas minha curiosidade com os livros veio assim. E isto devo muito a João, que sem saber, me despertou esta curiosidade com os livros. E uma curiosidade que segue o meu próprio ritmo..
De Romeu e de Andrew tenho outras lembranças. Romeu me mostrou Júlio Verne e livros de ciências. Ele gostava muito deste tipo de texto e lembro de ter lido “Viagem ao Centro da Terra” (inteiro!) em uma edição emprestada por ele. Lembro de associar muito Romeu à idéia de ciência (hoje, músico e jornalista, talvez ele odiasse ler isto...). O pai de Romeu era engenheiro e o incentivava com coisas científicas. Lembro que Romeu tinha um microscópio em casa. Um microscópio! Ir à casa de Romeu, lembro, era como ir a uma feira de ciências. Pai engenheiro e um microscópio: isto me impressionava demais! Eu morria de inveja.
Não me lembro de Andrew ter me mostrado algum livro. Mas lembro que estudávamos juntos na casa dele, próximo a onde hoje é a Faculdade de Artes do Paraná. A casa era silenciosa e ele era concentrado nos estudos. O pai de Andrew era professor de inglês (ele era britânico) na universidade e eles falavam em inglês entre si. Eu achava aquilo o máximo do intelectual. Além disso, Andrew era o melhor aluno da nossa turma. Me lembro muito de tardes e tardes em que estudamos juntos para provas de matemática (do temido professor Altemir). Havia na casa de Andrew um mural com gravuras dos reis ingleses. Coisas de intelectuais, eu achava... E assim como na casa de Romeu, eu sentia inveja, pois tudo isto era muito distante da minha casa, onde minha mãe via novela das oito e meu pai ia à mercearia da esquina – a mercearia do “seu” Nelson – tomar cerveja e uma cachacinha. Minha casa era um alarido só e não havia aquele silêncio da casa de Andrew. Aos meus olhos de onze ou doze anos, a casa dos outros era sempre melhor.

Pois foi João quem, num dia qualquer (de 85 ou 86, não lembro), sacou de uma das estantes da biblioteca um livro e abriu numa página qualquer. Leu uma passagem onde um grupo de alunos se pergunta sobre a vida sexual da professora. Um deles perguntava (sobre o namorado da professora): “será que ele enfia nela?”. Lembro de ter ficado muito impressionado com tal passagem. Lembro do meu tesão. “Será que ele enfia nela?”. Fiquei tão surpreso de ver uma frase assim num livro “sério”. Lembro de ter pensado tanta coisa: na professora de Geografia (minha utopia e fantasia sexual...), na Josiane (minha amiga de bairro e que foi, talvez, minha primeira “paixão” e, obviamente, minha primeira dor-de-cotovelo...). Mas, sobretudo, lembro do meu tesão. Vi que o livro se chamava “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. Dias depois, emprestei o livro na biblioteca. Obviamente, escondido, para ninguém saber que eu ainda não havia lido.
Reconheci meus pais. Reconheci o ambiente sufocante da família e da escola. Reconheci minha mãe e seus medos, que à época eu achava tão bobos, em Dona Estefênia, mãe do personagem. Reconheci meu pai no pai de Eduardo – fazendo a barba, terminando e dizendo “uma de menos”. Sofri quando Eduardo rompe com sua namoradinha de infância, isto bem no começo do livro. Ela se chamava Letícia e eu me apaixonei por ela (e obviamente, na minha leitura, ela era a Josiane). Porém, fui cativado por algo no personagem que reconhecia em mim: a sensação de que havia sempre algo a mais em relação a tudo e que este algo sempre me escaparia. Era como se a vida fosse uma procura de algo que não sabemos. Reconheci-me tanto nele que vi sua história como uma projeção da minha. Quando li sobre seu casamento, quis que o meu fosse daquela forma. Seu namoro com a futura esposa (Antonieta) era o que eu queria pra mim (e hoje me pergunto se não o tive). Da mesma forma, tive muito medo de perdê-la como ele a perde. Enfim, era o meu livro e Eduardo Marciano era uma espécie de síntese, de projeção, das minhas ambições e dos meus medos.

Já se vão vinte anos que “O Encontro Marcado” entrou na minha vida. Não tenho mais contato com meus amigos. João e Romeu são jornalistas em Curitiba. Não encontro João há uns cinco anos, pelo menos. Romeu, vez ou outra, o encontro. Mas não convivemos mais. O tempo passou e já não temos mais assuntos, a não ser um passado cada vez mais distante. De Andrew nunca mais tive notícias. A última vez que nos vimos foi por volta de 1991 e ele morava na Inglaterra. Salvo engano, estudava engenharia química.
Olhando mais atentamente, nós três também tínhamos um encontro marcado. Aliás, o livro tem este nome por várias razões, sendo a mais imediata o encontro que Eduardo, Hugo e Mauro (que a mim, me lembram de amigos mais recentes), colegas do Liceu, marcam para depois de quinze anos da sua formatura. Assim, como no livro, porém, percebemos que, em um determinado momento, a vida não se conta senão em anos e o encontro mais importante que temos não é entre nós, mas com nós mesmos. Acho que era esta a procura que eu reconhecia no personagem: a procura de si. Hoje, quando lembro de pessoas que passaram pela minha vida e, sobretudo aquelas que foram marcantes, não posso deixar de pensar que todas me deram algumas pistas desse encontro comigo mesmo. É delas, de amizades findas, de amores vividos, de distanciamentos silenciosos, de perdas e ganhos, que o salto entre a procura e o encontro, tão tênue e, que se desfaz a cada momento, é vivido. Com elas, aprendi o sentido de uma frase do livro, que sempre me instigou e que foi usada como capa numa das suas edições (e que peguei como subtítulo do blog...): “fazer do medo uma escada, da queda um passo de dança, da procura um encontro”.

8 comentários:

Anônimo disse...

Sabe allan, vez ou outra gosto de vir aqui. Acho o nome do "blog" uma maravilha, coisa finíssima - sempre paro um pouquinho nele, fico folheando-o... E sempre que venho experimento essa vontade de escrever um comentário. É que na maioria absoluta das vezes gosto do que encontro aqui - mesmo quando não estou procurando nada. Mas hoje foi diferente: acessei a net procurando mensagens para mim, entrei nos meus emails (gmail, hotmail, ig mail) e nada. Aí fiquei a navegar, sem precisão nenhuma, pelos sítios que não visito a tempos: antes do seu parei em outros bolgs, mas aqui encontrei a mensagem que estava procurando: "fazer da solidão um encontro". E mais: saio com uma vontade de ler o livro (pecado que cometo a 27 anos, ou seja, nunca li "o encontro marcado" - vou pedir no amigo secreto, de Natal...)
é isso, meu caro
nos encontramos em breve

Fernanda Marcon disse...

Ver:
http://panisetpoesis.blogspot.com/

Fernanda Marcon disse...

Charada : o encontro com a solidão é surpreendente?

Simone Iwasso disse...

li o texto inteiro, devagarzinho, tentando me conectar com essa reconstrução nostálgica e amorosa que você faz do passado, e de você mesmo nele. é uma linda e sincera declaração ao poder da literatura, e do quanto ela amplia nossos pequenos universos.

um beijo,

Simone Iwasso disse...

ps: inventário da solidão, do paul auster, é um dos livros mais eruditos e ao mesmo tempo claros que eu li este ano!

marcelpaulo disse...

Allan de Paula empresta sua dicção a João Pedro e, dessa alquimia, nasce, por fim, uma escritura de João Pedro, com cheiro de sangue, suor e excrementos (saravá Nietzsche !). Oxalá João Pedro siga escrevendo a partir dos refugos de seu corpo...

Maikon Augusto Delgado disse...

Gosto muito da tua prosa. Aposto que tem uns escritos aí escondidos na gaveta...

André Egg disse...

Allan camarada: que maravilha de texto. Me encontrei nele também, afinal li o livro por recomendação tua e também foi marcante. Curiosamente li estes dias um texto no Estado de Minas sobre o livro (estou na minha temporada mineira com a família).
É muito especial lembrar das leituras (O tempo e o vento também li inteiro por recomendação tua) e dos camaradas do CEFET e do "Dolores". Obviamente estavam lá o Martins - com sua erudição literária e fã do "Van der Graf generator", o Emerson e o Marco Farracha. Bons tempos.
Acho que estamos de novo na adolescência. Quando chegamos na metade dos trinta parece que ficamos com uma sede danada de nos encontrarmos outra vez conosco mesmos. Acho que vou ler o livro de novo. Saudações...