segunda-feira, julho 02, 2007

Passatempo

Um dos momentos mais difíceis para quem escreve é quando não se tem assunto algum para um texto. É horrível. A página em branco nos encara e desafia, como se nos chamasse para um duelo. Eu, nesses momentos, tenho alguns rituais: varro a casa, escuto música, vou à janela ou simplesmente puxo assunto com alguém próximo. Às vezes funciona. Na maioria das vezes, não.
Hoje estou vivendo um destes momentos. Já varri a casa duas vezes, escutei Beatles, fui à janela e enchi a paciência do João, que está aqui próximo. E nada. Nenhuma idéia. Nenhum mote. Sobre o que escrever?
Como dizem que, nestes momentos, deve-se escrever somente e deixar a imaginação à vontade, resolvo então criar uma cena. Um casal em um momento de intimidade. Tema já desgastado, é verdade. Mas um casal sempre dá margem para boas estórias. Poderia ser um casal em crise. Mas isto seria triste e, como sou romântico, prefiro o momento de intimidade. Isto até dá margem para um texto picante. Quem sabe?
Um casal. Penso em nomes compostos: Maria Lúcia e Paulo André. Será que funciona? Não sei. Tudo vai depender do desenrolar da cena. Vamos ver.

Quando Maria Lúcia disse no seu ouvido “vem”, Paulo André sentiu pela primeira vez, naqueles quatro meses de casamento, aquela preguiça básica. Não que tenha perdido a libido em relação à esposa. Longe disto. Ainda ontem mesmo eles tinham tido uma noite ótima. “Então”, pensou, “já está bom, né?”. Ele até queria, mas se pudesse ficar parado, sem se mexer muito, seria melhor. Enfim, estava com aquela preguiça em relação ao que já é rotina, aquela lentidão diante do que é familiar. Quem nunca sentiu isto que atire a primeira pedra. Ora, caro leitor, chegue mais perto e diga, só pra mim: nunca teve preguiça de algo que faz todos os dias? Preguiça de levantar da cama e ir para o trabalho? Preguiça de lavar a louça? Então, por que criticar o pobre Paulo André por estar com preguiça de... fazer exercício à noite? E ainda mais um exercício que ele vinha fazendo com freqüência? Sejamos compreensivos com o moço.
Mas será que Maria Lúcia entenderia?
“Vem”, repetiu.

PAUSA: vamos fazer um pacto, caro leitor. Estou pensando numa Maria Lúcia ninfomaníaca. Tem que ser uma ninfo senão o texto não funciona. Pode ser? Uma ninfo insaciável. Devoradora. Fisicamente pode ser de qualquer jeito. Eu, particularmente, sempre que penso numa ninfo penso em uma mistura de Nastaja Kinski em “Paris, Texas” com Angelina Jolie em qualquer filme. Nunca soube o porquê, mas as duas sempre me deram medo, como se nunca cansassem de sexo. Porém isto não importa e, além disto, não quero influenciar seu pensamento. Pense na ninfo que você quiser. Pensou? Está certo que Maria Lúcia não é nome de ninfomaníaca. Uma ninfo de apelido Malú? Não dá. É muito docinho. Mas já estou adiantado no texto e mudar agora seria um trabalhão. Peço desculpas por esse deslize. Enfim, uma Maria Lúcia ninfomaníaca. Combinado? Então, retornemos ao mais importante.

“Vem”, repetiu.
Não, Maria Lúcia não entenderia sua preguiça. Ela gostava muito de sexo. Ela nunca cansava e os dois ficavam horas naquilo. Ele jamais vira uma mulher com tanta aptidão. Nos primeiros dias do casamento ficara até assustado, pois ela não era daquele jeito enquanto namoravam. No começo achou muito bom. Mas já eram quatro meses naquele ritmo e a vida exigia outros afazeres e ele era trabalhador e estava ali deitado. Sem sono, é verdade, mas deitado. Enfim, estava com a dita preguiça.

MAIS UMA PAUSA: O leitor mais atento deve estar se perguntando: “mas como alguém tem preguiça de fazer sexo?”. Não é isto. Ele não estava com preguiça do sexo propriamente dito. Não nos precipitemos nos julgamentos. Ele estava querendo ficar ali, apenas. Entenderam? Ali. Era uma preguiça digamos... da vida... Ora, caro leitor, não faça muitas perguntas. Você já entendeu.
Outra coisa: alguém pode estar pensando “será que esse João Pedro de Andrade escreve a partir da própria experiência?” A resposta é não. Eu sou de Minas Gerais e, como todos sabem, mineiros não sentem preguiça. Além disso, eu jamais me retrataria com um nome de novela como Paulo André. Por favor!? Se não confiam na minha capacidade literária, pelo menos confiem no meu bom gosto para comigo mesmo.
Voltemos.

Paulo André resolveu então apelar para um estratagema que funcionara em sua vida amorosa passada: fingiu que não era com ele. “Quem sabe assim ela desiste”, pensou. Fingir-se de morto. Resolveu ficar quietinho. Maria Lúcia veio então para cima dele, usando a clássica tática dos beijos no pescoço seguidos de aliciamentos nas partes pudendas. Maria Lúcia era uma mulher decidida. De ações imediatas. Beijos e aliciamentos. Mão aqui e mão ali. Mas Paulo André, mesmo não sendo sertanejo, era um forte. Agüentou incólume. Resistente. Tenaz. Fechou os olhos e se concentrou na sua preguiça. Era uma daquelas preguiças de quarta à noite, no inverno. Daquelas onde a cama já estava quentinha quando Maria Lúcia viera deitar. Não era uma preguiça qualquer, era uma preguicinha. O que era melhor ainda.
Maria Lúcia continuava ali, nos beijos e mãos e apertos e cheiros. Ela era ótima nisto, o sonho de qualquer homem. E pior: era tinhosa. Não desistia assim tão fácil. E percebendo que suas ações não surtiriam efeito, resolveu baixar o nível, quer dizer, o local dos beijos.
Paulo André sentiu um frio na barriga. Ou melhor, uma lambida na barriga. Neste momento percebeu que era preciso fazer algo, uma reação capaz de interromper aquela tentativa que ele, escaldado, sabia onde ia parar. Ele iria acabar cedendo. Agora era uma questão de princípios. Resistiria.
Assim, virou-se e deitou-se de bruços.


PAUSA: perdão, mas aqui não resisto a um comentário. Porém, este comentário destina-se ao leitor, respeitando o artigo o. Então, por favor, a leitora dê um tempinho na leitura deste texto. Vá à cozinha pegar um copo de leite, uns aperitivos. Que tal ir à janela para ver o movimento da rua? Enfim, inventa alguma coisa porque a conversa agora é entre homens.
Caro leitor, uma das coisas mais dignas de atenção é a imaginação feminina e sua capacidade de inventar labirintos de idéias e pensamentos. O ponto é interpretar estes pensamentos. Deve-se, para isso, atentar para os sinais. O problema é que existem milhares deles: o tom da voz, o movimento da sobrancelha, o beicinho, ou até mesmo, a conjunção de Júpiter com Plutão num ângulo de 62° em relação à Lua. O sucesso com as moças depende da capacidade masculina de interpretação. E ai daquele que descobrir errado. É ou não é algo espantoso? E tamanha complexidade não poderia ficar de fora deste texto. Em suma: quero dizer que nada é simples com Maria Lúcia. E pior: é uma daquelas mulheres bem criativas...
Assim, até para o melhor usufruto do texto, imagine uma Maria Lúcia cheia de criatividade. Pensou? Então vamos lá.
Aguardemos um pouco a volta da cara leitora.
Retomemos.


Assim, virou-se e deitou-se de bruços.
Maria Lúcia estranhou este gesto. Num primeiro segundo, não entendeu e ficou, por um instante, olhando para o marido. Mas já no outro segundo, percebeu a proposta. “Paulo André? Você?”, disse. Jamais esperara isto do marido. Mas não achou ruim. Pelo contrário, até gostou da idéia. Como ela não era uma mulher de se fazer de rogada, e estava aberta a novas experiências, não perdeu tempo.
Paulo André achou que tinha resolvido o assunto e salvo a honra da sua preguiça. Mas eis então que sente algo viscoso como uma língua na base das suas costas. E pior: avançando a lambidas firmes rumo ao desconhecido. O pânico tomou conta de Paulo André. Era preciso pensar em algo rapidamente. Questão de segundos. Um minuto talvez. E a língua ia descendo. O que fazer?


PAUSA: eu mesmo que estou escrevendo fiquei surpreso e nervoso com esta iniciativa de Maria Lúcia. Que angústia! Estou na dúvida do que fazer. Preciso salvar o meu herói. Talvez um ataque de espirros por parte de Paulo André? Isto o salvaria com certeza. E também seria uma boa saída, pois daria ao texto um toque ao estilo de alguns cronistas brasileiros dos quais gosto, como Fernando Sabino, Stanislaw Ponte-Preta ou Luís Fernando Veríssimo. Eu poderia, inclusive, homenagear este último, fazendo com que Paulo André pulasse da cama cantando o hino do Inter de Porto Alegre.
Mas não sei. Estou na dúvida. Já está galhofeiro demais este texto. Talvez um final mais intelectual salve o escrito. Uma possibilidade é pensar em como alguns escritores célebres resolveriam o meu dilema. Por exemplo:

Edgar Allan Poe: Paulo André vira-se rapidamente e, com uma faca, que estava sob o travesseiro, corta a língua e o pescoço de Maria Lúcia e esconde o corpo dentro da parede da casa.

Kafka: a polícia invade o quarto e prende os dois sem que eles saibam o porquê.

Garcia Márquez: Paulo André sai flutuando da cama, encarna seu tataravô Aureliano Buendía e vai para a Colômbia derrubar o presidente do país.

Borges: Paulo André diz “CHEGA!” em sânscrito, língua que ele aprendeu lendo os livros antigos de um relojoeiro nascido em Antioquia e que vendera sua biblioteca para um sebo localizado próximo à Plaza de Mayo.

Marquês de Sade: Paulo André se anima, pega um par de algemas, um grampeador, dois alicates e um abridor de garrafas, e ainda pede para Maria Lúcia chamar umas amigas.

Hemingway: Paulo André resolve sair e beber todas.

Emile Zola: Paulo André é salvo pelo despertador, que toca e lembra a ele e à Maria Lúcia que é hora de ir para a mina de carvão.

Camus ou Sartre: Paulo André começa a chorar compulsivamente diante do absurdo daquela situação, onde ele não era ninguém e nada daquilo tinha sentido algum.

Nelson Rodrigues: Paulo André fecha os olhos, se entrega à língua de Maria Lúcia e pensa no seu sogro.

Realmente, as possibilidades são inúmeras. Tantas que talvez o melhor seja dar autonomia aos personagens. Dizem que um texto é bom quando ele vai além de quem escreve. Deixo então a estória nas mãos (ou na língua...) dos seus protagonistas. Pensando bem, eles é que são os maiores interessados. Por que então fico aqui me metendo no momento de intimidade deles? Eles que se resolvam. Por isso mesmo, se o final não for a contento, a culpa não será minha. Inclusive, eu confessei no início que não sabia sobre o que escrever.

O que fazer?
Paulo André resolveu dizer chega.
- Lucinha, me escuta!
- Hum... – lambidas.
-Lucinha, me escuta!
- O quê, Paulo André?
- Eu estava pensando... Hoje não. Não estou muito disposto.
- ... -
- Pode ser amanhã. Que é que você acha?
- Amanhã?!
- Sim, amanhã. Hoje eu queria ficar assim, agarradinho, sem fazer nada. Que tal?
- Não.

Agora cabe a Paulo André descobrir o que significa este "não".

5 comentários:

nicole lima disse...

hehehe
bom dia senhor!
(confesso que o final do nelson rodrigues era tentador, mas gostei mais do seu - "nao" -)
ainda mais hoje que eu tive sonhos bizzarros.
(será que eu também vou ter que fazer analise?)
"nao"

Anônimo disse...

A opção agarradinho já seria perfeita. Desde que fosse com o Allan poeta.

Anônimo disse...

saiu-se bem, já que nem assunto tinha. Diverti-me muito.
beijosss

Anônimo disse...

rs...
gostei do texto. divertido. hoje o dia pediu ler você pra finalizar. =]

Fernanda Boechat disse...

muito bom, Allan, muito bom.

o final? você superou os outros escritores. ;)

um bisou