segunda-feira, junho 25, 2007

O goleiro e sua condição

Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento

Jorge Mautner


33 minutos. Segundo tempo. Voz de radialista:

...cobrou agora Juvenal. Direto, sobre a área. Salta Chico. Não alcança a bola. Mas ficou ainda do campo contrário. Cruzou à boca da meta! Aliviou Gambetta! Vem para Bauer. Bauer aparou o couro no peito. Tentou passar por um contrário. Atrasou para Jair. Jair então infiltra-se. Empurrou o couro. Defendeu Tejera. Voltou para Danilo. Danilo perdeu para Julio Perez, que entregou imediatamente na direção de Míguez. Míguez devolveu a Julio Perez, que está lutando contra Jair, ainda do campo uruguaio. Deu para Ghighia. Ghighia devolveu a Julio Perez que dá em profundidade ao ponteiro direito. Corre Ghighia! Aproxima-se do gol do Brasil e atira! Gol! Gol do Uruguai! Segundo gol do Uruguai. Dois a um, ganha o Uruguai...

Ele se levanta lentamente e observa a comemoração dos uruguaios. Mantém, por um segundo, a cabeça baixa, como a pedir perdão por aquele momento. E aquele momento era um momento de silêncio, uma espécie de funeral repentino que tomara todo o estádio, que silenciara o pagode infernal que se estendia desde a manhã, como se o estádio obedecesse a um interruptor cuja posição fora invertida. Ouviam-se apenas os gritos uruguaios. A imagem daquele dia: onze jogadores silenciando duzentas mil pessoas. Mudas. Estáticas. Suspensas.
E todos os silêncios e todos os olhos e todas as preces e todos os ódios, malefícios e mandingas, bençãos e orações, voltaram-se para aquele goleiro de 29 anos que, sozinho (como ficaria o resto da vida), agora estava de cabeça baixa, como que a ouvir a uma sentença.
E nos doze minutos restantes do jogo ele ficaria ali em silêncio, solitário ante aquele mar de gente, observando o jogo de longe e torcendo, como um espectador, um ouvinte em Quixeramobim, um transeunte na Praça da Sé, um devoto em Juazeiro ou um marido qualquer no balcão de um bar perdido do Centro, por um gol, um mísero gol que evitasse a tragédia que se prenunciava. Ele, tão importante no jogo, nada podia fazer a não ser observar de longe e torcer, torcer, torcer.
E nesses doze minutos que, conforme as leis físicas que regem o futebol, passaram como se fossem doze segundos – porque o time estava perdendo – ninguém no estádio percebeu que ele jogou de olhos marejados e que toda sua vida lhe viera à mente como num filme desbotado, preto e branco, porém nítido. Todas as cenas, desenlaces, ganharam naqueles doze minutos, uma nova exibição. Enquanto o jogo se concentrava no outro lado do campo, naquela tentativa desesperada do time para reverter a situação, e onde o outro goleiro se tornava o novo herói de uma nação minúscula, ele passava em vista todos os lances da sua vida.
Nunca se sentira tão só em toda sua vida. Mesmo com duzentas mil pessoas em volta, era ele e mais ninguém.
Lembrou da infância em Campinas, do futebol entre os amigos, da sua predileção pela ponta-esquerda, dos primeiros bicos e do seu emprego no laboratório de química, onde se revelou um ponta do time da empresa. Lembrou da sua chegada em São Paulo, para começar sua carreira no Ypiranga onde, por acidente, tornara-se goleiro. Lembrou da estréia no Vasco e dos milhares de gols que evitara; dos títulos que conquistara com o time do Rio e das manifestações de gozo da torcida. Lembrou das derrotas, dos xingamentos a que se acostumara. E diante destas lembranças percebeu como amava aquilo tudo, como o futebol dera o sentido da sua vida e que um dia tudo aquilo lhe estaria distante, no passado.
E, num átimo, lembrou que ali estava no jogo mais importante da história, onde tudo seria dividido em antes e depois. E que aquele gol que tomara minutos atrás seria uma mancha, um estigma, a ser carregada pelo resto da vida. Onde quer que fosse seria declarado culpado, o maior dos traidores da pátria. E, por um instante, imaginou que após o fim da partida ninguém se lembraria do que fizera antes, dos gols que evitara. Ele seria para sempre o goleiro que falhara na hora imprevista, o homem derrotado no momento mais importante. A imagem do fracasso. E de súbito olhou para a torcida e teve a impressão de que todos o olhavam com ódio, desprezo e raiva. Teve, então, a pior sensação que jamais tivera: que, encerrada a partida, caso realmente perdessem, seria banido do mundo, condenado tal como um criminoso a expiar seu crime e que carregaria sobre o ombro a culpa daquele time pelo resto da vida. Viu-se dali a cinqüenta anos expiando um crime num país onde a maior pena possível era de trinta.
Ao pensar isto, o desespero lhe veio como um tiro.
Nesse exato momento ouviu um apito e voltou sua atenção ao jogo. Com um lance do outro lado do campo, ironicamente quando o outro goleiro agarrou o último ataque, a última tentativa daquele time de empatar o jogo, o juiz, britanicamente pontual, deu a partida por encerrada.

3 comentários:

nicole lima disse...

homem-peixe ao mar!!!
acho que alguns dos meus posts preferidos se salvaram...
sede mata.
:)
(gostei do novo template, mas tenho uma certa predileção pelas fontes sem serifa, never mind, herança dos idos tempos modernos)

Rita Loiola disse...

Adorei. Da outra vez, publica em jornal, he. No estadão saiu um uma vez sobre aquele juiz afastado porque aceitou propina e se declarava inocente, ou algo assim... bonito também

André Egg disse...

Que belo texto. Tão legal ver as coisas por outros olhos...
Queria indicar este texto no meu blog mas não acho link. Como faço?