sábado, janeiro 13, 2007

Fora do Texto

Ele acordou cedo disposto a aproveitar o dia. Trabalhar pelas manhãs lhe era mais agradável. O dia ainda fresco, a casa deserta, a luz entrando pela janela da cozinha e dando uma luminosidade toda especial. Enfim, era pela manhã que ele tinha as melhores idéias. Fez o ritual do café rapidamente - sim, o café da manhã para ele era um ritual - e sentou-se à mesa diante de uma página aberta no computador. A página, em branco, tinha uma expressão que lhe viera no dia anterior: "Fora do Texto". Ali estava ele e a página em branco. Não sabia bem ao certo o que escrever. Por quê "fora do texto"?

Não. Resolveu mudar o título. Mas "fora do texto" lhe agradara. Resolveu manter a expressão. Tinha algo ali naquela frase e ele tinha, sim, uma idéia em mente, mas por onde começar? Ele odiava este momento: a primeira frase, a primeira palavra. Nunca sabia para onde ir, exatamente porque poderia ir para qualquer lugar. O papel em branco lhe parecia o espaço perfeito da liberdade. Esta era tanta que o sufocava. Para onde ir?

Ele pára e durante minutos mira o papel em branco. Nestes momentos poderia apelar para certos recursos: um copo de café, um pouco de tabaco em seu cachimbo, uma música dos Beatles, uma mirada na janela para o prédio que se apresenta defronte a sua casa. Mas não. Ele recua diante de tais estrategemas. Fica ali, imóvel, inerte, absorto diante de uma simples página em branco. Ela o desafia. Tem em mente uma mulher no centro de São Paulo. Da onde tirou esta imagem? Talvez de alguma conhecida, talvez de um filme. Não sabe ao certo. Mas pensa num personagem feminino no centro de São Paulo.

O centro de São Paulo parecia a ela um labirinto no qual desejava se perder. Viver somente, deixar-se levar. O centro de São Paulo lhe dava medo e fascínio. Um prazer quase doloroso: prédios enegrecidos, calçadas imundas, postes antigos. Tudo ali lhe agredia, mas ao mesmo tempo lhe acariciava a alma. Era tudo vivo, muito vivo. Uma vida que só se percebe na decadência. Ela resolve subir a São João, passa pelo Largo Paissandú, dobra na Ipiranga e se assusta com o caos das obras da Praça da República. Foge dali rapidamente, e toma a Vieira de Carvalho onde observa o movimento dos travestis nas portas das boites que, ainda há pouco, estavam abertas. Chega finalmente ao Largo do Arouche, onde se senta diante de um quiosque que vende flores. São nove horas da manhã de uma segunda-feira e o Largo do Arouche é de um sossego só. Do seu banco ela apenas observa a preguiça dos funcionários do quiosque, uma jovem bonita sentada próxima e que lhe dá a impressão de estar chorando, o trabalho lento de dois garis, uma mulher que passeia com sua filha. Ela fecha os olhos e se deixa embalar pelos sons da maior cidade que conhece e que naquele momento só lhe passa a paz de uma cidade do interior. "A cidade não é grande", pensa. "São as pessoas que não a vivem". Sim, porque para ela uma cidade deveria ser vivida.

Ele estanca e relê o que escreveu. Não lhe diz nada. O centro de São Paulo só lhe passa a imagem de um inferno. "Prazer por prédios enegrecidos"? Pausa para os Beatles. Ele sempre destravava quando escutava certas canções de Lennon e McCartney. "Dear Prudence" era infalível. Talvez porque prudência fosse o que buscava nestas horas. Não se deixar levar pelo primeiro impulso. Remoer as palavras e as cenas. Ele adorava criar cenas e personagens. "The sun is up, the sky is blue, is beatiful and so are you" canta Lennon. Resolve pensar em outra personagem. Alguém que não vê beleza em "prédios enegrecidos". Talvez uma mulher infeliz.

Desde que descobrira que Anselmo lhe traía, Vera tomou a pequena Letícia como uma espécie de proteção de si própria. Estar junto à filha passou a ser o sentido da sua vida e um antídoto contra suas próprias ações. Já pensara em se matar. Já pensara em armar um escândalo. Já pensara no divórcio. Mas para tudo isto faltava-lhe coragem e sobrava-lhe amor por Anselmo. Quanto mais ele a maltratava, mais aos seus pés ela desejava se jogar. Pois Letícia, "Leti" como a chamava, lhe salvava destes pensamentos e lhe exigia a atenção que gostaria de dar ao marido. Assim, passear com a filha era um dos raros momentos de equilíbrio que tinha em sua vida. Naquela manhã de segunda, as duas vão passear no Largo do Arouche. É sossegado andar lá e nem parece o centro de São Paulo. E da sua casa, na rua Helvétia, até o Largo é próximo e bom de caminhar pela manhã. No Arouche, nada lhe chama muito a atenção, mas Vera estranha aquela moça sentada de olhos fechados no banco defronte ao quiosque. Mulheres sozinhas lhe parecem incógnitas. Não gosta daquilo. Porém, sente pena de uma outra jovem sentada próxima e que chora copiosamente. Por que choraria? Lembra de Anselmo e tem vontade chorar também.

Ele gosta do nome Letícia. E lembra que uma vez leu no jornal, no dia das mães, os depoimentos de algumas mulheres que diziam amar mais os maridos do que os filhos. Ficara impressionado com aquilo e compadecido das mulheres. Alguém que nega a maternidade carrega um estigma e isto lhe produz compaixão. Relê o texto e pensa que Vera talvez fosse assim e por isso não entende como uma mulher pode ficar sozinha. E por isso se compadece de outra que sofre, mesmo que não saiba o porquê. Porém, se for isto, a filha não pode ser um lugar de equilíbrio. Pelo contrário. Será que vale a pena mudar? Ele não sabe. Ademais, não estará muito meloso isto? Uma mulher que não consegue largar o marido? Tem cara de dramalhão mexicano. Pode ser, mas ele sabe que existem muitas mulheres assim. Conhece algumas que são mais esposas do que mães. Mesmo assim, ele está na dúvida. Talvez uma outra personagem. Uma jovem moça - o dia é de obsessão pelo feminino. Ele resolve tentar.

Anna já andara todo o centro de São Paulo desde que vira André com aquela outra moça. "Vadia", pensava. Anna não se conformava de estar sem André. Seguiu-o à noite e o viu com a moça entrando num bar da Paulista. Não teve coragem de entrar. Mas também não quis ir embora. Quis ficar ali e ver André com a outra. Era doído e Anna sofria com isto. Mas ela precisava ver isto. Há semanas ela suspeitava da existência de outra mulher. Estava ali somente para confirmar. Quando os viu, saiu correndo e caminhou sem direção por todo o Centro. Agora, às nove da manhã, estava ali, sentada num banco do Largo do Arouche. Chorava, copiosamente. E no seu choro não deu a menor atenção às pessoas que a observavam: os funcionários do quiosque de flores, uma moça sentada em silêncio num banco próximo, uma mulher que passeava com sua filha. Esta última ficou lhe fitando, como se quisesse saber o porquê de sua tristeza. Teve ganas de xingá-la, de dizer "não é de sua conta, infeliz!".

Ele desiste. Acha que de novo criou um apelo feito de imagens fáceis. Por que é sempre um homem a causa do sofrimento feminino? De onde ele tirou isto? Por que uma Anna abandonada ou uma Vera traída? Fica durante alguns minutos pensando nisto. Talvez o problema seja dele, em sua solidão, que o faz ver todos envolvidos em alguma relação. Talvez a escritura, para ele, acabe apenas refletindo os seus medos. Mas porque se limitar a isto? Ele levanta e vai à janela de casa e apenas observa, enquanto pensa neste ato que tem usado para estar no mundo, a escrita. E, por um instante, lhe vem a idéia de que lhe falta escuta, atenção às pessoas. Elas estão ali, a matéria-prima do que gosta de escrever. Basta observá-las. Ouví-las. Vem-lhe, então, a idéia de que a escritura está fora do texto: será que estes esteriótipos femininos que ele cria são devidos a sua pouca atenção ao que acontece fora de si? Talvez. Ele sempre admirou as pessoas que sabem ouvir e observar. Sempre quis ser uma delas, mas nunca foi muito bom nisto.

Talvez um dia, quando for mais atento, escreva um texto para além de qualquer lugar-comum. Talvez um dia, quando apenas viver e transformar a escritura num retorno da vida, sem mistificações, sem compaixões, talvez aí escreva um texto.

Ele resolve sair. Andar um pouco pelo centro. Desde que se mudara para o Largo do Arouche, perdeu o hábito de caminhar, o que é estranho, já que o Largo é tão sossegado. Há um quiosque, há os garis, um ou outro travesti da Vieira de Carvalho. O lugar exibe uma calma estranha para o centro da maior cidade que ele conhece. Quando sai do prédio, observa o Largo e o acha aprazível, mas não vê nada demais. Uma pena, porque se prestasse atenção, veria que próximo ao quiosque há três mulheres sentadas num banco. Uma delas segura uma criança.

2 comentários:

Anônimo disse...

João Pedro, vulgo Allan, quem fala é o Magoo. Descobri o teu blog por acaso. Nem sei como ao certo. Queria só te dizer que estou gostando muito dos teus textos, da tua narrativa, de como você desenvolve as histórias. Não li muito, mas o que li até agora me agradou muito.

Aquele abraço para você.

Anônimo disse...

taí um lugar em que você se coloca que eu posso, quero e gosto de respeitar .