quinta-feira, junho 08, 2006

O mito

O mito é o nada que é tudo
F. Pessoa



Suas lembranças de Hamm são o que restam daqueles dias de primavera. Sim, hoje, dotado desta distância que só o tempo produz, ele sabe que seu desejo por Hamm foi infinitamente superior ao que deixou transparecer. Um desejo feito de cantos e intermezzos, sons e silêncios. Desejo que se guiava por uma história de futuro, por algo que não foi, mas que poderia ter sido. Poderia: mistério. Desejo de futuro, mas que se realiza no pretérito.

Pois Hamm, hoje ele bem sabe, não foi senão uma melodia suspensa, como um solo de oboé que, diante de uma página dobrada da partitura, estanca-se, interrompe-se, queda-se bruscamente em silêncio e imaginação pelo que viria depois. O que viria depois? Solos? Tuttis? Duetos? Pouco importa: visto de agora, são meros exercícios de imaginação. Imaginação que guia suas memórias, feitas de nuvens difusas e perfis pouco nítidos.

De Hamm, ele guarda o riso, promessa de gozos infindos. Riso de quem sabe viver. Nem simpático, nem irônico: suficiente apenas para um convite e um deslize. Uma fuga. O riso-enigma. O riso em negativo. Riso em potência e seu encantamento em ato. Pois foi o riso quem produziu seu cadafalso diante de Hamm. Se conheceram assim: “olá!” e ela sorriu. Simplesmente um cadafalso. É óbvio que ele, precário em seus sentidos e covarde ante as paixões (sobretudo as d’alma), ofuscou seu desejo com uma dança estúpida feita de comentários e frases feitas que aos ouvidos de Hamm soaram como gracejos desinteressantes e incômodos. Assim soaram aos seus ouvidos e assim confirmaram os seus olhos.

Olhos que durante meses não viram (ou fingiram não ver) as outras danças com que ele buscava, algo patético, por um segundo ter a graça de Hamm. Olhos que Hamm escondia atrás dos óculos escuros que lhe davam um ar despojado e feroz, enquanto observava, sentada num banco próximo à escada do pátio, o movimento e o alarido juvenis. Olhos que, algumas vezes, nos intervalos dos exercícios de sedução, que ela, aprendiz das artes do cinismo, repetia à exaustão, ele pôde mirar, enquanto ela sorvia um aguado café e esperava, sempre em silêncio, como se não estivesse ali (ou se protegendo da investida de seres precários), o retorno aos seus exercícios. Olhos que Samuel Beckett transformou em mote para as implicâncias de Hamm com Clov. “Você já viu os meus olhos?”. “Viu os meus olhos?”. “Os meus olhos?”. Os olhos de Hamm. E por um instante, não era a Clov que a pergunta se dirigia. E por um instante, ele teve ganas de, num assalto de audácia com a qual apenas sonhava, irromper o silêncio do templo sagrado de Hamm e de seus espectadores e vociferar “Sim, eu já vi seus olhos pretos, vermelhos, pretos! Já interrompi o fluxo dos meus dias observando em surdina o movimento dos seus olhos!”. E ante o susto ofendido da platéia, enfretaria Hamm. Ele, tímido tornado audaz, fraco transmutado em impávido, de pianíssimos ataques convertidos num cluster infernal, berraria de modo a afetar tímpanos e gargantas e silêncios e a alma daqueles espectadores mortos: “Pois eu me masturbo todos os dias pensando nos seus olhos!”. E quem sabe ali mesmo poderia praticar o nefando crime solitário a que se reduzia e, diante do espanto daqueles mortos-vivos que profanavam com sua presença o templo-igreja de Hamm, despejaria sobre ela, sobre os mortos, sobre os vivos, sua ânsia, o fruto dos seus ócios e de seus delírios retidos durante toda uma primavera eterna.

Mas não. Logo o instante se desfez e sua opressão racional se restituiu. Ele, covarde, bastou-se num reflexo da fala de Clov: “Não, não vi seus olhos”. Olhos que o condenavam a ganas de insensatez e malefícios e que ele exaltava em solfejos de solidão.

De Hamm, guarda a lembrança dos convites de seu pescoço exposto por cabelos curtos e cortados de forma moderna, quase ousados. Pescoço longo de elegante perfil e que lhe dava um ar nobre, superior, impedindo as tentativas que ele fazia para negar a condição feminina de Hamm e impor a ela uma imagem de infante de modo a provocar nele a repulsa pelo personagem de Nabokov. Vão esforço. Pois do pescoço logo ele se guiava até os ombros largos, de diva de filme mudo e cinza, e descia pelos braços finos e chegava às mãos. Ah, as mãos! Como desejou tê-las sobre ele num deslizar de suavidades e descobertas, onde seu corpo se pungisse ante o mais leve toque e onde Hamm o ensinasse suas habilidades e imponências. Mãos de dedos finos e longos, de uma delicadeza quase senil.

Do pescoço às mãos, o trajeto da infância ao pleno despudor.

Mas de Hamm ele guarda, sobretudo, a lembrança da inquietude a que o remetia sua presença quase ofensiva, um redemoinho de interrogações e violências. Inquietude que o fazia viver como se fosse um personagem fugido da prosa de Clarices e Virgínias, um traço sem direção, um rabisco inacabado. Inquietude que o fazia sonhar em ser Clov, simplesmente para estar ali, próximo do escrutínio, do azedume, da acidez de Hamm. Inquietude que o fazia pensar que o absurdo não estava na desrazão da espera de Hamm e de Clov ante o fim de tudo, ou no ritual barroco destes dois personagens de Beckett, mas sim nos delírios a que ele se condenara por conta de um desejo de mão única, um desejo interrompido no ponto de chegada, um desejo que criava uma relação na qual ele não era ninguém. Era isto: a inquietude que Hamm lhe provocava o fazia encarar a própria deformidade da sua condição. Ele não era nada. Ele não era ninguém.

O desejo, que o fazia ser, repentinamente o diluía no nada.

Hoje ele não vive mais a presença de Hamm e tudo isto são evocações que ele guarda de um passado cada vez mais distante. Hamm tornou-se um vulto ofuscado no tempo. Às vezes, andando por ruas de peixe e lágrima ele se pergunta, “que será de Hamm?”. Chega a ter curiosidade, mas sabe que o tempo é implacável e, como o deus que é, jamais permite, sem punições, que o já vivido se concretize. Agora, talvez, ele pudesse ver Hamm na sua condição humana, tirá-la de seu pedestal, dotá-la de sangue, estupidez e pus. Agora, quem sabe, ele poderia apenas lhe dar um beijo na face e dizer “afinal, nos compreendemos. Não mais te temo e podemos rir juntos”. Quem sabe o tempo não tenha lhe dado a chave para vencer o mito? Mas isto ele nunca vai descobrir e, no fundo, ele sabe que Hamm em carne e osso e sangue e plasma não lhe interessa, pois não há vida mais concreta do que aquela que ele imagina.

3 comentários:

Vekho disse...

Não há força que me mova mais do que aquela do que é real, e que eu mesmo inventei. Criei para mim, não tão consciente disso, mas se tornou minha realidade.

Anônimo disse...

não sabia aonde dizer. penso que pode ser aqui, já que eu gostei muito do que escreveu em O Mito.
mas, é sobre seu pseudônimo... bem escolhido, lembro-me de você falando que gostaria de um nome que soasse bem, de preferência formado por três partes, será que é isso, ou estou enganada? Caiu-te bem, João Pedro de Andrade

Anônimo disse...

Deveria rever o mito!