domingo, agosto 30, 2009

Uma canção tem três minutos

He disliked bars and bodegas. A clean, well-lighted cafe was a different thing.
Hemingway

A construção era simples: uma porta na esquina, entre duas ruas, e três grandes janelas laterais que permitiam uma boa visão do exterior, da rua, do mundo. Lá dentro, porém, era que a vida se desenrolava, cotidianamente, nas idas e vindas dos habituais fregueses daquele café. Quem freqüenta um café sabe a que me refiro: é uma questão de princípio e, escolhido um café, ela se torna o café. É como se cada freguês, que tinha seu horário e mesa certa, sua bebida exata, fizesse daquele lugar sua casa, um espaço só seu. E como da rua fosse possível observar tudo lá dentro, todos se sentiam observados pelo mundo que corria fora: todos os carros, transeuntes, podiam ver aqueles habitués em seus movimentos e pensamentos. Estavam expostos à curiosidade do mundo.
O café tinha um nome: Descartes. A dona, uma paraense e ex-proprietária de livraria, o achava um bom nome para um café, um lugar onde ela gostaria de ver todos imersos em reflexões, algo cartesiano. Havia muito de idealismo nisto e Berenice, a dona, o admitia. Mas, apesar dos habitués não serem os intelectuais que ela gostaria que fossem, Berenice gostava do seu café, o Descartes e, com o passar do tempo, percebeu que o melhor não eram os pensamentos, mas a fauna humana que ali se revezava durante o dia. De fato, havia de tudo um pouco no café Descartes, uma profusão de tipos que por ali passavam todos os dias, nos mais diferentes momentos. Pessoas que, na maioria das vezes, mal se falavam, mas que se reconheciam mutuamente como habitués do mesmo café. Era como um segredo compartilhado por todos. Não se falavam, mas sabiam entre si que dividiam, nem que por breves instantes, o mesmo café.
Berenice não imaginava mais um dia de sua vida sem aquelas pessoas por perto, pessoas que muitas vezes a aborreciam, mas que, ao mesmo tempo, preenchiam os espaços vazios de sua vida. Desde que se separara, após um ano onde, ironicamente, a convivência com seu marido tornara impossível a comunicação entre os dois, Berenice dedicara-se exclusivamente ao seu café, aquele pequeno lugar de uma esquina perdida no velho centro da cidade. Agarrara-se àquele lugar, àquelas pessoas, como se elas permitissem um mínimo de gozo na vida, uma pausa na solidão para onde, ela percebia, sua vida caminhava, como se o café Descartes e seus fregueses lhe servissem de senha para uma leveza momentânea, a única que lhe restara.
Por isso mesmo, Berenice odiava os domingos, único dia da semana onde o Descartes não abria. Menos por ela própria, mas pelos seus dois funcionários, a Elisa, cozinheira, e o Josafá, garçom. Elisa era uma senhora bastante recatada, evangélica, que sustentava 3 filhos com aquele trabalho. Mal era vista em seu trabalho na cozinha. Josafá sim, era um companheiro para Berenice, uma espécie de irmão mais novo. Ela adorava o jeito galhofeiro, contido num humor preciso e mordaz, daquele gaúcho de Cruz Alta, torcedor do Inter, ouvinte de chulas e xamamés e que se revezava como amante de duas mulheres casadas, uma delas habitué do café. Não fosse por Elisa e Josafá, Berenice certamente abriria aos domingos, dia morto no qual ela era obrigada a vislumbrar o vazio que tanto temia.
Era aos domingos, então, que Berenice sentia falta daquele povo que todo dia aparecia no Descartes e usava o café a sua maneira, delimitando espaços, vivendo rotinas íntimas, mesmo que observadas por qualquer um. Berenice sentia falta dos estudantes da faculdade de letras que, durante a manhã, se reuniam nas mesas, alguns para fazer seus trabalhos, outros para simplesmente matar aulas; do “seu” Melquíades e do “seu” Marinho, que ocupavam religiosamente a mesa do canto direito numa série interminável de partidas de damas; da Rosana, bela secretária da empresa ao lado, que entrava às nove; do João e da Valentina, casal que morava a uma quadra do café e que sempre iniciava ali seu dia, com o hábito de tomar café e folhear o jornal, pontuando as notícias com comentários e conversas que, Berenice percebia, eram pesadas e sérias – era ali que aquele jovem casal discutia sua relação; do Vinícius, professor de inglês que dava aulas particulares numa mesa do café, sempre às terças, quintas e sextas; da Dona Estefânia e as descrições de suas doenças todas; do Manoel, sempre lendo algum livro, sentado numa mesa próxima a uma das janelas e alternando a leitura com longas miradas para a vida que corria fora; da Beatriz, conhecida fotógrafa já aposentada, que vivia no mesmo prédio do café e que sempre descia no início da tarde e ali ficava conversando com Berenice; do Rolando, um portenho aqui radicado, completamente apaixonado por Nelson Cavaquinho, e que passava horas e horas numa mesa do canto observando as pessoas, conversando com todos e, às vezes, escrevendo pequenos hai-kais com que ele presenteava uma ou outra pessoa; da Laís, garota de programa que morava num prédio próximo e que marcava seus encontros no Descartes para depois ir a sua casa; do “seu” Dantas, antigo líder sindical preso na ditadura, além do Ramires, violonista que acompanhara Maysa numa de suas viagens ao exterior e que se gabava de ter tido um caso com a diva.
Berenice achava bela a presença destas pessoas. Havia algo de comovente naquelas rotinas que se entrecruzavam e estavam expostas aos olhares do mundo. Sim, ela amava aquelas pessoas e precisava delas. Eram seus irmãos. Seus filhos. Sentia-se viva entre eles, num momento de sua vida em que o que mais temia era a solidão. Sem estas pessoas e outras que freqüentavam o Descartes, Berenice sentia-se perdida e profundamente triste. Vinha-lhe então a angústia de pensar que esta falta, sentida aos domingos, um dia se estenderia ao restante da semana. Nesse momento, ao perceber a finitude de tudo aquilo, ao pensar que todas aquelas pessoas que povoavam sua vida e seus dias não estariam ali para sempre e que haveria um momento onde ela estaria realmente só, Berenice se lembrava de um dia em sua infância em que o pai lhe levara ao circo e de como, ao terminar o espetáculo, ela desejara dolorosamente que ele continuasse. “Tem mais?”, perguntava ao pai. “Tem mais?”. Mas o espetáculo não continuou. Terminara, simplesmente, como tudo em sua vida terminaria um dia. Sua infância, seus amores, seu pai, seu casamento, sua juventude, tudo. E então, nesse momento, a idéia que evitava sempre lhe saltava à mente, súbita e simples: a morte. Temia a morte porquê percebia que, muito provavelmente, estaria sozinha. Um dia, ninguém mais estaria ali e nada mais, café, habitués, transeuntes e carros, haveria. Seria somente Berenice e mais ninguém.
Assim, os domingos de Berenice passavam como meras expectativas e esperanças da segunda-feira. Ao contrário do habitual para a maioria das pessoas, as segundas eram vividas por Berenice com um grande alívio e até uma certa dose de esperança. Alívio porque o espetáculo continuara, esperança porque talvez ainda durasse mais um pouco. Como na infância, ela apenas desejava que tudo aquilo se prolongasse ao máximo, tingindo seus dias com um pouco da beleza que só as pequenas coisas humanas são capazes.

2 comentários:

Anônimo disse...

- Berenice, te segura! Vou aí te buscar pra comer uma panqueca domingo lá em casa. Depois de um panqueca da D. Débora tudo muda de figura!
Vai me acusar de "comprar" os personagens se eu disser que eu gosto da Berenice?! =P
...sempre bom falar contigo.
Bjosssss

Unknown disse...

Olá. Bom conto. Aliás, ótimo blog.
Abraço.