sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Mensagem numa garrafa

este é outro texto que já foi postado aqui em outras épocas e foi retirado por uns tempos, para uma aventura externa.

Quando abrires o livro daquele poeta mineiro cujas palavras lemos como navegantes liam antigos portulanos, como se elas fossem rotas possíveis em um mar de desenganos e perdas, e leres “palavras duras ditas em voz mansa te golpearam/ nunca, nunca cicatrizam/ mas e o humour?”, talvez chores no silêncio do teu quarto, contemplando a vista deste bairro de vida lenta tal qual cidade no interior, e talvez se entregue a uma solidão de tipo diferente das que viveras até hoje, uma solidão feita não da ausência de matéria ou carne, mas sim de humana compreensão diante do que consideras natural em ti. Ou talvez apenas se enrede num fio interminável de considerações e ponderações do que fizeras até então, remoendo cada lágrima dita, cada palavra vertida, cada silêncio pronunciado, cada esporro contido, lembrando com vertigem dos dias de um outono distante da tua vida onde o gozo se tornara fácil e o medo se dissipara em ondas de esquecimento.
Porém voltando os olhos pela superfície opaca do papel, na qual transparecem estados d’alma de alguém que nunca vimos, lerá também “vamos não chore, a mocidade está perdida, a infância está perdida, mas a vida não se perdeu”. Ao leres esta litania de um mineiro triste, orgulhoso, de ferro, talvez sintas um misto de desespero e angústia, tamanhos que não caberiam nas linhas de uma carta, no texto de um e-mail ou numa mera conversa com os poucos sobreviventes que te cercam e aos quais não precisa oferecer uma face pública feita de afetos e risos forçados. Uma angústia muda, tal qual lâmina que trespassa qualquer esperança que tenhas no que virá, qualquer remorso que sintas pelo que fora, qualquer apego que tenhas pelo que aí está. Ou talvez cresça em ti uma raiva inaudita pela tentativa deste bardo em te convencer que nem tudo está perdido e que podes ainda contar com um simples, um mísero poema impresso numa folha de papel. A este sentimento de raiva, lembre-se: e o humor?
E se ao poema voltas: “O primeiro amor passou, o segundo amor passou, o terceiro amor passou”. Sim, disto não podes fugir e desabas no solo frágil da tua existência e admites que, de todos os amores findos, restou apenas a memória de breves momentos condensados na lembrança de um beijo, de uma música, de um cheiro, de um tapa, de uma traição ou de um simples momento de intimidade de uma manhã de domingo. Amores pretéritos: àquilo que concedeste o benefício da eternidade sobreveio uma imprecisa sensação do tempo, medo de que sejas tu o erro, o engano, ou o temor de que paire sobre ti o vaticínio da solidão.
Neste instante talvez lhe venha a idéia da longa viagem, a sensação de que tudo se revelará um sonho quando caminhares pelo Leblon, ou pela Paulista, ou pela Avenida de Mayo ou por uma outra paisagem que não a tua. Ledo engano: descobres que alguém se adiantou aos teus pensamentos. “Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra”. A viagem seria apenas um desvio momentâneo, um breve interromper da dor, suspensa sabe-se lá por quanto tempo. Então, se não vale a viagem, tudo está perdido?
Não, te responde a inscrição do poeta. “Tens um cão!”. Risível comentário diante dos teus pensamentos, que talvez soe como um gracejo de mau gosto. Porém, talvez só um cão, um gato, um peixe, possa lhe dar o silêncio que procuras e a presença que exiges. O que procuras? Tu também não sabes e nem um cão te perguntaria. A ele basta apenas o carinho das suas mãos. E se por um acaso a idéia do cão continuar lhe ofendendo, lembre-se novamente da pergunta anterior: e o humor?
É possível também que a esta altura do poema você tenha se esquecido de que estas palavras são de um Escorpião, incapaz de oferecer um ombro, mas pronto a compartilhar contigo da dor que talvez sintas. Um Escorpião que jamais lhe ofereceria seu corpo (“tão infenso à efusão lírica”), mas que choraria a morte de um simples leiteiro ou se comoveria pelo sumiço de uma moça sem graça chamada Luísa Porto. Não convém, portanto, recusar estas palavras, dádivas, mesmo que elas provenham de alguém que se define como sendo alheio ao que “na vida, é porosidade e comunicação”. Talvez as palavras sejam as únicas dádivas possíveis. Talvez.
E se você ainda duvida da compaixão que um cidadão de uma cidade perdida no interior de Minas é capaz de sentir, permita-se seguir adiante no consolo que ele te dirige. Verás que no fim de tudo, após os protestos tímidos, após o amigo que partiu, após os amores que passaram, após descobrir que nada tens e que talvez o melhor seja realmente “precipitar-te, de vez, nas águas” – hipótese que, com certeza, passou pela tua cabeça um dia – verás que, após tudo isto, o melhor a fazer é simplesmente dormir: “Estás nu, na areia, no vento. Dorme”. Sim, dormir embalado pelas palavras que, senão lhe tocam o corpo, talvez sejam a única via para o teu coração.
Vamos, não chores.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro esse texto