terça-feira, fevereiro 27, 2007

Da arte de tomar sol dentro de casa

Para os que exercitam a preguiça.

Ela ama os últimos dias da primavera quando as manhãs de sol são suaves. Prenúncio dos dias de calor insuportável que virão. Nestes dias, o sol se dá no ponto exato da dobra entre o prazer e a preguiça. Entra pela janela lateral de um quarto e perfaz um ângulo perfeito para a contemplação.

Preguiça: s.f. estado de prostração e moleza, de causa orgânica ou psíquica, que leva o indivíduo à inatividade.

Confesse caro leitor: quantas vezes, num dia de semana, inclusive aqueles mais ocupados, você não olhou para aquele facho de luz incidindo sobre a sua cama e se deixou deitar e ficar ali simplesmente sentido o sol?

Ócio: s.m cessação do trabalho; folga, repouso, quietação, vagar

Pois ela levou isto às últimas conseqüências e criou uma verdadeira ciência, um douto saber sobre esta arte, milenar. Sim, a palavra é esta: arte. Tomar sol dentro de casa exige aprimoramentos e estudos constantes. Em suma, método.

Método: s.m conjunto de regras e princípios normativos que regulam o ensino ou a prática de uma arte

Em primeiro lugar, o colchão. Este deve ser colocado de modo que a incidência dos raios solares ocupe o maior espaço possível. Não precisa ser um grande colchão já que este é um prazer único, de solitárias vivências. Também não precisa ser um colchão bom. Pode ser um velho colchão, já moldado às exigências do seu corpo, como se fosse uma fôrma. O importante é que ele se dê ao sol (há colchões que o negam, retraindo-se à incidência da luz). Pois ela tinha o colchão perfeito: dobrável, onde seu corpo se estendia perfeitamente. O Colchão. Cada parte de si, cada fragmento, era preenchida pelo colchão, como se este fosse uma metáfora do seu corpo: um outro senão o mesmo.
Depois, a janela. Este talvez seja o item mais difícil e mais importante. Assim como há colchões que negam a luz, há janelas completamente opacas, às quais a luz nada diz. A janela deve ser transparente, dar-se à luz, permití-la, e simplesmente ser um meio, jamais um fim. A janela deve ser um anteparo à luz excessiva do mundo. Um filtro que só permite a passagem da luz na medida exata. Uma retina que se contrai diante do que é excesso. Enfim, a janela deve ser uma passagem tênue, imperceptível, porém eficaz, entre dois mundos: um de sensações imediatas e excessivas que não dão margem à lentidão (a que chamamos labor), outro, infinitamente mais prazeroso, de sentidos inexatos e vagarosos (a que chamamos preguiça). Para ela, a janela do seu quarto não era das melhores (ela preferia a da sala, muito maior, porém exposta ao alarido da rua), mas tinha a vantagem de se abrir para os fundos do prédio onde morava e não vislumbrava senão telhados, quintais e roupas estendidas no varal. Portanto, esta era a sua janela. E melhor: aprendera, assistindo a um filme chamado “Moça Com Brinco de Pérola”, que a limpeza da janela pode criar um efeito de luz todo especial. Assim, marcara os dias em que limpava a janela: gostava dela nem tanto limpa por completo (o que significaria uma luz impessoal) e nem tanto suja. Buscava o meio-termo, um ponto onde a sujeira criava a luminosidade que queria. Ela ria de si própria quando pensava nesta “sujeira metódica”. “Coisa de virginianos...”, dizia. Mas se vangloriava quando percebia as minúcias e as delicadezas do seu método.
Colchão e janela formavam as peças do seu jogo. Combinadas, restava a ela o ócio por atividade e a preguiça por exercício. Às vezes, deitava-se nua. Outras, com um pijama velho, de sapinhos estampados. Às vezes, folheava uma revista. Raras, um livro (Cortázar era o seu predileto). Porém, sua preferência era o devaneio. Puro e simples.

O sol. O de Curitiba é peculiar.
Não esquenta se for primavera. Pode-se ficar horas sob sua batuta.

Curioso isto. Lembro o de Buenos Aires. Ah, o de Buenos Aires era ótimo. Dava uma luz mais escura, e criava um jogo de tonalidades mais neutras. Bem definidas.

O sol de Curitiba será portenho?

?

É. Nunca prestei atenção nos sóis de outros lugares. Não lembro do sol de São Paulo.

O de Belo Horizonte não é muito bom não. Ilumina demais.

.......................................................................................................O sol daqui é ótimo mesmo.

!?!

E ali permanecia durante as manhãs, deitada, inerte, lenta. Pensamentos vagarosos, sensações esboçadas. Um quase limiar de algo que o método a impedia de concretizar. Tudo se desmanchava no ar dos seus pensamentos. O sol, a janela, o colchão, ela própria. Devaneio. Devôo.

Devanear: v.i divagar com o pensamento; perder-se em cogitações.

Não, ela não se perdia. Pelo contrário. Nestes momentos de ócio e preguiça e devaneios, sentia-se tão bem consigo mesma, tão viva, que desejava espalhar a sua arte, levá-la a amigos e conhecidos. Convidá-los a tomar sol consigo e compartilhar com eles o simples prazer da lentidão sob o sol e as delícias de não se fazer absolutamente nada.

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